“Mitificação…”
ou:
como
que…
uma Ode
aos Pés
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M. Gama Duarte / 2016
(Instalação: composição cénica)
Tema: Como que
uma Ode aos Pés
Registo 1
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Penso algumas vezes:
“Se os meus pés um dia vierem a falar, poderei certamente neles
depositar toda a confiança e esperar que cumpram o preciosíssimo papel de auxiliares
da minha memória… E, se no futuro tal vier a acontecer, eles vão ajudar-me a
recordar momentos, coisas… e sítios por onde virei a passar… E também ajudar-me-ão a recordar factos de
tempos bem mais antigos e dos quais, num tempo presente, em verdade só meros
fragmentos recordo, ou nem um só registo me ficou dos mesmos como recordação”.
Mas porém, talvez o justo e o que faz sentido, seja nada
esperar dos meus pés. Ou seja: nada esperar deles que me vá-lhe neste plano de expectativas… Pois tenho que reconhecer que a juventude dos meus pés já há algum tempo se perdeu…
Muitos tempos!…
Tempos e mais tempos (anos e anos) já pelos meus pés passaram… e eles (os meus
pés) por sua vez já por muitos tempos passaram… – por tempos e mais tempos eles
já passaram, e sempre acompanhando todo o resto de mim.
Olhei ainda agora
para eles (para os meus pés)... E vi-os nus (estão nus…).
E assim mesmo – nus
– ao longo da vida foram marcando
muitas das páginas da sua história… – história que, de certa maneira, é a mesma
de toda a matéria restante que, em sentido ascendente (na vertical) se estende
a partir deles… Poder-se-á dizer, em síntese, que no todo se trata de uma história de vida com pés e cabeça… – uma história prenhe de humanidade… e também um
exemplo de fidelidade: um todo unido.
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M. Gama Duarte / 2016
(Instalação: composição cénica)
Tema: Como que
uma Ode aos Pés
Registo 2
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Daqui – do alto (do
mais a Norte de mim) – demorei-me neste
olhar a Sul (olhando os meus pés).
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M. Gama Duarte / 2016
(Instalação: composição cénica)
Tema: Como que
uma Ode aos Pés
Registo 3
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Para que conste: o galo da torre (algures) deu conta de
que a lua já vai alta…
... E esta é a terceira
madrugada deste Maio… – deste Maio de mais um ano bissexto do
nosso calendário gregoriano (ano de 2016). E dada esta informação (a mim próprio me informo
de tais elementos), e dado que esta crónica já vai a mais de meio, é naturalmente
dispensável, no fim, o cuidado ou a
trabalheira de a situar no tempo…
M. Gama Duarte / 2016
Título:
“Quando a vizinhança
é curiosa, serena
e simpática”
Talvez venha a
terminar este serão (ou esta noitada) fixando o meu olhar nos meus pés.
Após as imaginárias
doze badaladas de há umas duas horas (parece que ainda ecoam nos meus ouvidos),
passei quase todo o tempo com a atenção focada no meu portátil… (teclando…
teclando… e teclando).
Mas agora (e aqui
está a diferença) sobre os meus joelhos, também nus como os meus pés, tenho apenas
um pequeno bloco de apontamentos aberto. E os meus dedos apertam uma vulgar caneta
que vai obedecendo às ordens do meu pensamento.
Ainda hoje associo
a meia-noite às doze badaladas do relógio de pêndulo que existia em casa dos
meus pais.
Ainda me recordo
bem de que a casa não era grande… – característica que não era caso isolado
naquela zona de Lisboa – um bairro tipicamente popular…
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M. Gama Duarte / 2016
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Título
da foto (à direita):
“Bati
e ninguém veio à janela… Mas deixei ficar o recado
Com as
flores”.
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M. Gama Duarte / 2016
Título:
“As
doze badaladas
e três
minutos”
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… E quando eu já deitado,
deixando-me embalar nas teias do primeiro sono, por vezes acordava assim que soava
a primeira badalada… Outras vezes só à segunda ou à terceira badalada eu
despertava… E o som parecia que trespassava toda a grossura das paredes – construções
antigas em que as paredes mestras eram em pedra e argamassa e as das divisões interiores
em tabique.
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M. Gama Duarte / 2016
Título:
“As
doze badaladas
E três
minutos”
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M. Gama Duarte / 2016
(Instalação: composição cénica)
Tema: Como que
uma Ode aos Pés
Registo 4
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Volto a olhar para
os meus pés… Ei-los!
Vagamente me
recordo de terem ficado tapados ao eu puxar para de cima da parte inferior do meu
corpo uma das metades do edredom… Mas adivinho que há minutos, aproveitando a
minha sonolência, num repente os meus pés sacudiram de cima de si o pedaço de
edredom que quase lhes cortava a respiração. E agora, libertos da “letal” asfixia, ei-los sem pretensões e
sem vaidades a exibirem a sua nudez a seis palmos a Sul do meu queixo... E
deram conta de que eu os espreitava daqui de cima (a seis palmos a Norte,
segundo a sua perspectiva ou o seu ângulo de visão). E são estas as contas (ou as proporções padrão), a
saber: a altura total do corpo humano equivale, linearmente, a cerca de sete
vezes a dimensão da cabeça…
… E ao fundo, a
seis palmos abaixo do meu queixo (a Sul), as irrequietas pontinhas (as extremidades dos meus pés) a acenaram-me e a pestanejarem
um sorriso.
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M.
Gama Duarte /2016
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(“ O
galo da Torre (algures) deu conta de que a Lua já vai alta…”)
Havia atribuído à
minha mão esquerda a responsabilidade de assegurar que o meu bloco de
apontamento não me resvalaria do joelho nu em que assentava. Mas entretanto o
polegar, o indicador e o médio da minha mão esquerda libertaram-se para uma
atenção, mais que merecida, para com os meus pés…
Correspondi à
simpatia dos meus pés não lhes faltando com um semelhante e merecido sorriso… Ou
tudo isto não passou de uma súbita alucinação… Ou não passou de um gracejo da
minha fértil imaginação (tenho para mim que há em cada ser humano o pulsar de uma
pequenina artéria dada a ousadas e surrealistas deambulações… mesmo que tímidas
sejam essas deambulações)… ou tudo isto não passou de um sonho.
Se a prosa que neste
momento escrevo vier a dar uma crónica publicável (se eu o entender: ser
publicável), lá terei que pegar na máquina das fotos e a seguir arranjar um
argumento que convença os meus pés a perderem a vergonha da sua falta de
fotogenia e a aquietarem-se numa pose digna frente à objectiva… – isto com o
propósito de obter umas imagens capazes de ilustrarem esta simples crónica.
Mas
não sei se terei êxito…
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M. Gama Duarte / 2016
(Instalação)
Motivo:
A
máquina das fotos
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M. Gama Duarte / 2016
(Instalação)
Motivo:
A
máquina das fotos
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M. Gama Duarte / 2016
(Instalação)
Motivo:
A
máquina das fotos
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… E agora me
recordo que há anos que assim é… Ou seja: este adiantado da hora; este mesmo
travesseiro a amparar-me o lado do corpo que menos vejo reflectido nos
espelhos… Travesseiro este de que falo que melhor conhece, e sabe, os meus sonhos que eu
próprio…
Muita coisa sendo a mesma coisa e o mesmo de sempre. Mas quanto ao bloco de notas, não o mesmo bloco… E quanto à esferográfica, também não a mesma.
... E verificado que tudo esteja (as coisas que se repetem
e as que de todo não se repetem), a
minha cabeça penderá… Mas não fecharei os olhos antes de um último olhar sobre
os meus pés que continuam nus… e que talvez já tenham pegado no sono primeiro que eu.
Se eles sonharem
não sei se sonharão comigo ou se no sonho pensarão em mim…
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M.
Gama Duarte /2016
Título:
“Luar prematuro”
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Todavia dou-lhes as
Boas Noites.
(Não sei se me
ouvirão... Mas ainda se vai ouvindo dizer que o que vale é a intenção).
M. Gama Duarte