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sexta-feira, 24 de abril de 2015










O Fado

Quando chovem guitarras

 canta-se o fado

M. Gama Duarte / 2015

Materiais:
 Desenhos a tinta da china e ecolines,
e recortes colados  






Chovem guitarras



Noite… Agora a noite...
… (Anoitece).
Há uma hora marcada para o encontro no coração da noite.
Das bandas das sete colinas, etéreo bisturis – que são vozes que ressurgem em subtileza e frémito seculares. Vozes que apontam a Sul – um apelo de asa sobrevoando o Tejo… – vozes humedecidas de um líbido de maresia.
Vamos ao encontro do coração da noite no coração da cidade…

Lisboa.
Brilhos; reflexos; cintilações; contrastes…
Sinos na noite – que não são os sinos dos campanários das igrejas, das capelas, das basílicas, ou da Sé (estes jazem em silêncio). Os sinos que redobram são bocas que folgam em odores e melodias: cantam; choram; bebem; sorriem… E à sua maneira olham; à sua maneira escutam; à sua maneira tocam; à sua maneira sentem; à sua maneira cantam (e é isto… – é assim… E isto é o fado: maneiras e gestos nossos. Mas ao nosso lado também as maneiras e os gestos de outros que chegam de outros mundos, e que por vezes nos inspiram em algum sentido na maneira de nós sermos… ou não sermos).

Rua dos Remédios, n.º 83 (Lisboa). À porta os habituais reencontros. Também outros rostos para os quais cordialmente sorrimos pela primeira vez. A entrada é estreita: saem uns, entram outros… Cruzam-se emoções.
– “Entrem… entrem, há lugar para todos!...” – convida-nos por estas palavras o Sr. João Carlos, que é como dizer: venham sempre, que são sempre bem recebidos.    
Entramos, e há sempre um banco onde sobra espaço que nos baste para nos sentarmos.
Um olhar mais circunspecto e à média luz, desbrava caminhos entres outros olhares e vultos… e ao mesmo tempo desbasta nuvens de fumaça. Fixa-se por fim nas paredes onde em cartazes e molduras ressaltam rostos – todos (ou quase todos) felizes: rostos sozinhos – isolados no espartilho dos caixilhos; rostos encostados a outros rostos em habituais manifestações calorosas, ou de circunstância… Fisionomias fidelíssimas, e muitas das mesmas, certamente, já tendo ali passado por nós… mas que esquecemos

É verdade que não adivinhamos as vozes pelas fisionomias, pelos gestos ou pela forma do andar. Assim como não adivinhamos os traços do rosto de alguém, que nunca vimos nem nos falou, por simplesmente lhe ouvirmos a voz.

 Os meus olhos voltam, saltitantes, a fixarem-se nos rosto que nas molduras continuam estáticos, e sorrindo.
Ao mesmo tempo eu acendia o segundo cigarro e soprava para o tecto a primeira fumaça. Tive a súbita impressão de que alguém havia aproveitado um súbito momento de abstracção em que me deixei levar, e que durara fragmentos de segundo, para naquelas paredes acrescentar alguns retratos mais… e que esse alguém o havia feito num apagar e acender de luzes. E entre os retratos que não vira antes, lá estava o rosto redondo e sorridente do Sr. João Carlos.
Ficámos a conhecer este rosto (o rosto do Sr. João Carlos) aquando daquela vez que, ao sabor da noite e ao cheiro do fado, ali nos encontrámos. O Sr. João Carlos é o anfitrião da casa a quem sempre estendemos a mão para um cumprimento reservado a amigos…
… E outros (outros rostos – que são sempre mais e mais – e alguns dos mais são os que a objectiva da câmara fotográfica corta, porque é sempre pequenina para tantos sorrisos) …
… E pela calada do silêncio, enobrecem-se vozes que nos despem a alma e nos amaciam o coração… Um silêncio que acorda o respirar das guitarras que febris trinam… E das molduras não arredam os rostos que parecem sorrir para nós mas que, na realidade, neles brilham olhos que não nos vêem (olhos que na película são invisuais, apesar de bem abertos, cintilantes e doces).
Porém, se esses olhos nos vissem não nos ofereceriam razões para considerarmos tal prodígio um privilégio: seria um olhar que não nos transformaria noutras pessoas: não nos acrescentaria valor: não nos alisava as arestas do destino.

(¿) Quantas e quantas vezes, nas nossas vidas, já confiámos o rosto à sensibilidade de um fotógrafo ou de um retratista a coberto do compromisso de captar o nosso melhor ângulo e a nossa mais bonita expressão?...

Silêncio… e a vossa atenção, por favor…– pedia o Sr. João Carlos à assistência… e logo passava às apresentações:
Vamos prosseguir a nossa noite de fado.
Aqui às Quintas e Sextas-Feiras, Sábados e Domingos: na “Tasca do Xico”, em Alfama. E hoje connosco à viola e à guitarra, respectivamente, Jerónimo Mendes e André Dias, para quem peço desde já uma salva de palmas…” (ouvem-se aplausos). “… E para nos cantar fado, na minha e na vossa presença, a voz de uma amiga que nos visita (mas uma cara já conhecida nesta casa): Rosa Maria Duarte”. E soa mais uma salva de palmas.
O Sr. João Carlos, além de apresentador habitual dos talentos, ele próprio é um talentoso fadista entre os mais fadistas veteranos do fado vadio… e é o anfitrião da casa: zeloso quanto à disciplina, princípios e tradições da mesma.

O troar dos aplausos abafou o ruído do banco corrido em que nos sentávamos, ao mexer-me. Rosa Maria, passando atrás de mim, ao de leve tocou-me nos ombros, e já sorria – era aquele sorriso que lhe desconta sempre duas dúzias de anos no rosto… E é o mesmo sorriso que espreita por detrás da voz que vem do centro do seu ser: da sua alma; dos seus dons; da sua vontade… – um sorriso que ganha asas e lhe viaja na voz:
– “Se uma gaivota viesse
Trazer-me o céu de Lisboa
No desenho que fizesse,
Nesse céu onde o olhar
È uma asa que não voa,
Esmorece e cai no mar.”

….
Da boca de búzios desse mesmo mar, quantas e quantas vezes recebemos beijos nos nossos ouvidos… neles deixando sons de que nos recordamos ainda, e nos recordaremos para todo o sempre (?).


O sabor do primeiro cigarro da noite; o vinho nos copos (os primeiros copos também), que lenta e silenciosamente enxameiam as emoções noctívagas; o lento acordar dos poros da sensibilidade – poros que acordam como que por encantamento… – por onde os sons nos vão penetrando até às vísceras da alma:
Silêncio, porque aqui mora o fado”.



M. Gama Duarte





(Dedico esta página à minha mulher Rosa Maria Duarte)









quarta-feira, 22 de abril de 2015



Lisboa


(Composição executada à base de colagens)
M. Gama Duarte / 2015 

Num tempo
 de outros

 tempos



Lisboa

(composição executada
 à base de colagens)
M. Gama Duarte / 2015
















































João Duarte

...
– Mãe…

... Onde, e quando, foi a cerimónia do teu casamento com o pai?
A mãe recordando o calor, as cores, o brilho e a pureza de um desejo (que fora ao mesmo tempo um sonho), respondeu ao filho:
– (Quando?..) depois da mãe conhecer o pai, meu filho… Mas primeiro namorámos… é assim o princípio com todos os casais…

Lá como o pai e a mãe se tinham conhecido (verdade, verdade), já Rosário (a mãe) havia contado ao seu filhote… (aquela história…): O pai (João) que, ao passar numa popular rua de um bairro antigo de Lisboa, vê pela primeira vez a mãe (Rosário) à janela de um rés-do-chão baixo… E depois o terem namorado ao longo de um Verão de um Outono e de um Inverno, sentados num certo banco de um pequeno jardim não longe da casa onde Rosário morava, e também não longe da igreja onde o respectivo rebento, oito meses após o nascimento, viria a receber o sacramento que lhe apagara da alma o mais antigo dos pecados da Humanidade…
… E é de não esquecer que fazia parte da história verdadeira e contada, aquele dia em que João se lembrara de levar a Rosário (sua futura esposa) um pequeno e original miminho… – um miminho dos que rareiam entre as tantas e diversas ideias que compõem a convencional lista comumente consultada pelos Romeus a fim de cativarem as suas Julietas.
E, por assim ter acontecido  – isto é, ter sido original a escolha de João –, das opções deste estavam excluídos os narcisos, as tulipas, as violetas… os anéis de safiras, as fantasias de chocolate…  etc. ou seja: essas coisas assim.
Como tal, naquele especial dia e à hora do lusco-fusco mais romântico que um Outono pode oferecer aos caídos de paixão, João enquanto um Romeu muito à sua maneira, surpreendeu a sua Julieta (Rosário) com um pequeno embrulho cujo conteúdo ao revelar-se (pela apresentação aroma e sabor), justificava a fama da velha cervejaria de Campo de Ourique (“O Canas”) que confeccionava uma das melhores bifanas de Lisboa.
E a mãe continuou, respondendo ao filho:
– E tempos depois casámos na igreja onde vieste a ser baptizado, meu filho.
Foi um casamento simples. Levamos poucos convidados… Foi uma cerimónia mesmo muito simples…
... Tu não sabes uma coisa, filho… É que as noivas quando já não são jovens deixam de possuir aquela graça. E por isso a mãe em vez de um vestido branco de noiva, levou um bonito fato azul e lilás para se casar com o pai… de modo que a mãe quando se casou com o pai foi vestida de Azul-Lilás.
...



M. Gama Duarte

(Extracto da crónica “Azul-Lilás” escrita em Setembro de 2010)








A prima Paula
caminhando por ruas de Lisboa
(uma das primas de Maria do Rosário Duarte)  




João Duarte
na companhia de amigos
num jardim de Lisboa

Maria do Rosário Duarte
na companhia de uma amiga
num jardim de Lisboa




















À esquerda João Duarte (serralheiro civil) nos anos 50,
na Lapa em Lisboa,
na companhia de um colega
de profissão 





Na opinião da clientela dos vários bairros de Lisboa que requisitava os seus serviços, o sr. João era um dos melhores no seu ofício. Chegaram até a chamar-lhe o homem dos sete ofícios. Pois, através do seu trabalho, ele prestava provas das suas competências em áreas além das que se relacionavam com a sua especialidade. Executava com qualidade trabalhos de sapateiro, de alfaiate, de marcenaria, de canalizador, de vidraceiro, e de mecânica de máquinas de costura. E era-lhe reconhecido um certo talento como inventor.






       

quinta-feira, 16 de abril de 2015





Dos frescos e verdes anos
Retratos


































Dos frescos e verdes anos
Retratos




Tios e primos do lado materno
 (férias em S. Vicente da Beira – Beira Baixa)
Ser ...




E era tudo…
–  tudo e o latejar dos seus gestos.
Lembravam-me os seus gestos
a forma das letras…
– a forma das letras mais simples (recém-nascidas).
E ainda existem os seus gestos…
e um sorriso
da cor daquele verbo doce
que se desfaz
no vermelho cetim das bocas,
e que nela deixa
o sabor da liberdade...
E lembro-me…
Lembro-me  de um violino de brincar,
e de um choro que respirava
o luar
(e que se dançava…)
E lembro-me de um pássaro azul – azul
e de asas transparentes –   
que vinha
riscando  com o seu azul
as douradas paredes do silêncio.
E eu “gritava-lhe:
– Vem!... vem …
Abeira-te de mim pássaro azul…
E diz-me de onde vens… – se do Norte,
se do Sul.


M. Gama Duarte   











Tia e primos do lado materno
 (férias em S. Vicente da Beira – Beira Baixa)




















Joaquim Gama (primo)


















Clemente Gama (primo)
























Tias e primos do lado materno


























M. Gama Duarte 





















terça-feira, 14 de abril de 2015




Fado…
Ou: o fado
e outras melodias

M. Gama Duarte /2015
(Técnica mista: papeis pintados e colagem de recortes)


…(e)
Por memórias e travessas
da velha cidade 



Intimidade


Escolheu no Jardim o banco
que mais perto tinha uma flor,
e descansou;

Desejou ter mais perto de si
a lua,
porque tinha frio;

Quis ter mais perto da sua boca
um rosto
porque havia um segredo
a partilhar.



M. Gama Duarte



segunda-feira, 6 de abril de 2015



Rosa Maria Duarte
Uma voz do FADO

Instalação /2015
Concepção: M. Gama Duarte
Design, montagem e registo fotográfico: M. Gama Duarte e Rosa Maria Duarte





O Silêncio só deve ser interrompido quando é para o valorizarmos.

Por isso se canta o fado para valorizar o silêncio…

M. Gama Duarte /2015



Silêncio que se vai cantar o FADO!

("Fado do Artista") 
Letra e voz de Rosa Maria Duarte, música de Jaime Santos.
À guitarra portuguesa Filipe Lucas e à viola de fado Vital D'Assunção.



sexta-feira, 3 de abril de 2015




Manoel de Oliveira



Outro ser humano (sábio artista – dos maiores entre os maiores), cuja figura e obra ficarão para sempre gravadas com dignidade, resplandecência e mérito, nas telas da nossa memória colectiva.
Obrigado, Manoel de Oliveira







Vale Abraão




Outros Mistérios da Cruz
Pintura

Materiais: aguarela, guache, pastel de óleo e seco, carvão







A mão suave
de um deus anónimo


E foram mais de mil as voltas que contei (…): voltas e mais voltas que o meu cérebro deu em redor da tal pergunta que a mim mesmo fazia e ainda hoje faço: Porquê?...
E a pergunta que a mim mesmo faço, ou acaba por se dilui nos interstícios do meu cérebro com as mais de mil voltas, ou retorna ao meu consciente intacta… e sem qualquer resposta.
E, a páginas tantas, paro de agonia ou paro de secura. De agonia ou de secura à semelhança da agonia, ou da secura, com que hoje acordei… e com a qual (agonia ou secura) às vezes acordo noutros dias…. E não é que em coisa estranha tenha pensado… ou, que me lembre, com coisa insólita tenha sonhado... Pois a noite dormida de ontem para o dia de hoje foi de sono profundo… Mas mal o sono chegou para me esbater o cansaço do dia que ficou para atrás… E a sede que agora me aperta, parece-me a mesma do dia de ontem… prostrado e vencido que me sinto… (afinal qualquer um de nós – seres humanos – de quando em vez temos destes dias...)  
A verdade é que pouca água tenho bebido que me mate a sede. E hoje as gotas de água que me serão necessárias para matar a sede, serão tantas quantos os passos que dei no dia de ontem caminhando meia Lisboa até que os meus olhos vissem Tejo.
E pensei: “Não sei que parte das águas deste rio enchem os afluentes, os lagos, os regatos, e os riachos que correm num certo deserto interior que às vezes comigo parece ter nascido…”
… Não sei se foi resposta para este enigma o que procurava ontem à noite quando passei à porta da Maternidade Alfredo da Costa – edifício de onde esperneando pulei para este mundo – mundo este a que já não sei (ou nunca soube até hoje) de que maneira ao certo pertenço.   
A agente da polícia que estava de serviço à porta da maternidade, ao dar por mim ali meio perdido, avançou dois passos ao meu encontro e perguntou-me se podia auxiliar-me em algum assunto. Eu disse-lhe que me deslocara ali propositadamente para saber se a minha mãe ainda se encontrava internada em alguma das enfermarias daquela maternidade… mas que provavelmente não (ela já ali não se encontrava), porque eu nascera fazia já cinquenta e picos anos... (isto uma ironia que espontaneamente me saiu no momento… – ironia talvez de palidez semelhante à que àquela hora me pigmentava o rosto).
Mas caso a solícita agente consultasse os arquivos da maternidade, viria de volta, ter comigo, na posse de todos e mais alguns fundamentos que confirmariam que a minha mãe não apenas já não se encontrava ali internada, como após o ano de 1956 jamais voltara a dar entrada nas enfermarias daquela instituição.
Que nunca a minha mãe havia entrado naquela instituição antes do ano de 1956 já eu o sabia… (nem naquela nem noutra maternidade… aliás: decerto nunca a minha mãe ocupara o seu ventre com outro que não eu).
Não sei se deva considerar esta exclusividade um privilégio pessoal (um privilégio que me fora concedido), ou se deva buscar no facto motivos para me envaidecer… (eu que até não tenho apreço por vaidades…).
Não foi egoísmo da minha parte essa exclusividade: o útero onde fui gerado ter sido aquela alcofa de carne que apenas eu conheci.
Desta mulher (a minha mãe) fui o único filho, e por pouco nem eu existia caso ela tivesse adiado a primeira e única gravidez da sua vida – ela uma mulher que havia deixado passar a sua juventude sem conhecer homem (palavras suas, das quais bem me recordo)… E só veio a casar aos 39 anos.

Em criança eu entretinha-me bem sozinho.
Embora não me sentindo infeliz (tive uma infância feliz), vivi esta estranha forma de orfandade que às vezes deixava no meu espírito uma espécie de rasto de cruzada contra uma difusa mancha de solidão interior – solidão às vezes em mim entranhada… e sentindo-a tocar-me o lado de dentro das paredes do meu corpo…
Eu podia tocar-me… – sentir-me na minha pele…
… Nasci com os braços “curtos” … e a predestinação, ou fatalidade, que fez com que nascesse “assim”, impedia as minhas mãos de se encontrem sobre o meu corpo num amplo e completo abraço. Se me abraçasse de forma que as minhas mãos se cruzassem (que nunca se cruzavam da maneira que desejava…), ficar-me-ia por abraçar apenas metade de mim: ou me abraçava tocando e sentindo unicamente o peito, ou me abraçava tocando e sentindo unicamente as costas.

Falava-me um dia a voz do sangue dizendo-me que tinha irmãos (e tenha-os… e tenho-os). Tenho dois irmãos que muito estimo (um irmão e uma irmã) do lado paterno. Não cresci à sua beira. Ficámos adultos (quase velhos) sem termos uma única vez brincado juntos… – coisa que parece ter sido uma espécie de embirração do destino. Mas acho-me também irmão de mim mesmo e irmão de todas as gentes e coisas.

Por capricho da sina de quem sou filho, não apenas sou irmão de mim próprio: sou gémeo de mim próprio. E esperanço-me nesta relação de fidelidade crónica… (que doença talvez o seja, ou talvez não).
Bebemos – eu e eu – do mesmo vinho, da mesma fonte surreal e mítica, do mesmo absinto. Sentamo-nos – eu e eu (eis o nosso corpo comum) à nossa peregrina e intemporal mesa. Ficamos frente a frente (eu e eu). E sobre a mesa as nossas taças… e cada uma das nossas duas mãos livres pega na respectiva taça.
Então, erguidas as taças, elas aproximam-se e tocam-se produzindo aquele subtil e reconhecível som do brinde aquando da celebração de algo importantíssimo. Depois, lentamente, a taça erguida pela mão direita toca o canto direito da minha boca, e a taça erguida pela mão esquerda toca o canto esquerdo da minha boca.
Somos amigos (eu e eu)… e a nossa amizade certifica-se neste ritual gesto.
Talvez ambos acreditemos numa vida eterna (?)… Mas qual de nós sobreviverá ao outro?... (eu ou eu?)…


Quantas vidas serão eternas, se houver eternidade?
Pensava nisto ao mesmo tempo que me aproximava de um sem-abrigo – isto já nas ruas da Lisboa Ribeirinha – um sem-abrigo que sossegava entre a mão peregrina de um Deus anónimo que o amparava (um claro luar), e uma trincheira de sacos de plástico sem forma mas cheios de nada e de tudo… E agasalhava-o uma manta rota e da cor do seu silêncio. Perguntei-lhe:
– “Já dormes, amigo?”
Esperei que me respondesse, mas não me respondeu… ou eu não o ouvi a responder-me.
(Nunca sabemos quando um sem-abrigo dorme, quando está acordado, quando nos vê, quando pensa, ou quando respira).
… Pois, o céu (o Sol, a Lua, as estrelas…) é uma beleza… Mas ninguém deseja tê-lo como seu único tecto…
Esta frase escrevi-a há tempos numa crónica sobre o Luís – o sem-abrigo de Alcântara (em Lisboa) que mendigava às portas da Igreja de São Pedro (mendigou… Eu vi-o durante anos). Cumprimentava o Luís e dava-lhe uma moeda quando trazia alguns trocos comigo na algibeira.   


Insisti com o sem-abrigo que encontrara nas ruas da Lisboa Ribeirinha:
– “Já dormes, amigo?”
Nesse instante ele abriu os olhos e respondeu:
– “Não!… não durmo, amigo”.
Perguntei-lhe a seguir se queria uma moeda. Pareceu-me que reagiu com indiferença à oferta que lhe fazia… mas acabou por dizer: “Tá bem, dá cá…”. Então estendeu a mão e aceitou.
Talvez me tivesse agradecido com um obrigado. Mas para mim o melhor agradecimento, ou retribuição, foi a novela extraordinária e interminável que me contou sobre a sua sorte (ou sobre a sua desgraça), que ouvi com todo o interesse.
Porém, nada lhe havia pedido, e ele também nada me havia pedido. Ou talvez eu me tivesse aproximado daquele homem, que nunca vira antes nem mais pobre nem menos pobre, contando que me desse um pouco de calor humano e de atenção.
Eu já não falava com vivalma desde o episódio havido instantes atrás, em que a agente da autoridade em serviço à porta da maternidade Alfredo da Costa, mostrando-se prestável, avançou ao meu encontro oferecendo-me auxilio.

Mais tarde, já atravessando o rio de cacilheiro… e levando comigo Lisboa nos olhos, recordava-me daquele rafeiro que apressado passou por mim lá para os lados da Rua Alexandre Herculano, e ao qual falei… mas ele sem tempo para me dar atenção… E recordava-me também daquele outro, não menos rafeiro que o primeiro, e que partilhava com um velho o patamar de entrada de uma dependência bancária de fachada envidraçada e iluminada.
Destes serenamente abeirei-me (do velho e do cão) encurtando os meus passos. Mirei o velho, e perguntei-lhe:
– “Como se chama o seu amigo”?
– “Diogo” – respondeu-me o homem.
Mirei desta vez o bichano, e comentei:
– “Gosto… gosto do nome… e fica bem esse nome ao seu amigo”.
Aproximei-me mais um pouco, e de mão aberta avancei para afagar o pelo do dócil rafeiro (tencionava saudar com intimidade e afecto o pobre bichanito).
– “À confiança” – tranquilizou-me o velho.
Confiante aproximei-me então um pouco mais, e o animal percebendo aceitou a minha mão.

Ali estavam... O destino tinha-os juntado. E não só partilhavam aquele exíguo espaço como também partilhariam aquela noite.
Retirei-me minutos depois ao mesmo passo com que me havia aproximado… e considerei uma vez mais:
– “Diogo fica bem ao seu amigo… e mais uma coisa posso dizer-lhe meu caro: há animais que merecem mais o nome de gente que certas pessoas”.
O velho sorriu, e por sua vez afagou o dorso do animal sem desmanchar o sorriso – um gesto que me dava razão: confirmava o que eu havia considerado a respeitos dos animais e dos nomes com que os humanos os baptizam.
Despedi-me com um desejo de “Boa Noite” (foram as minhas últimas palavras), e segui saltando por cima das pocinhas que as gotas de luar escorrendo das árvores iam deixando na calçada.





M. Gama Duarte

21 de Outubro de 2013         





Saudações Pascais à CAIS








Pintura

Título: habitação
Materiais: aguarela, guache, pastel de óleo e seco