O Fado
Quando chovem guitarras
canta-se o fado
M. Gama Duarte / 2015 Materiais: Desenhos a tinta da china e ecolines, e recortes colados |
Chovem guitarras
Noite… Agora a noite...
… (Anoitece).
Há uma hora marcada para o encontro
no coração da noite.
Das bandas das sete colinas, etéreo
bisturis – que são vozes que ressurgem em subtileza e frémito seculares. Vozes que
apontam a Sul – um apelo de asa sobrevoando o Tejo… – vozes humedecidas de um
líbido de maresia.
Vamos ao encontro do coração da noite
no coração da cidade…
Lisboa.
Brilhos; reflexos; cintilações;
contrastes…
Sinos na noite – que não são os sinos
dos campanários das igrejas, das capelas, das basílicas, ou da Sé (estes jazem
em silêncio). Os sinos que redobram são bocas que folgam em odores e melodias:
cantam; choram; bebem; sorriem… E à sua maneira olham; à sua maneira escutam; à
sua maneira tocam; à sua maneira sentem; à sua maneira cantam (e é isto… – é
assim… E isto é o fado: maneiras e gestos nossos.
Mas ao nosso lado também as maneiras e os gestos de outros que chegam de outros mundos, e que por vezes nos
inspiram em algum sentido na maneira de nós sermos… ou não sermos).
Rua dos Remédios, n.º 83 (Lisboa). À
porta os habituais reencontros. Também outros rostos para os quais cordialmente
sorrimos pela primeira vez. A entrada é estreita: saem uns, entram outros…
Cruzam-se emoções.
– “Entrem… entrem, há lugar para
todos!...” – convida-nos por estas palavras o Sr. João Carlos, que é como dizer: venham sempre, que são sempre bem
recebidos.
Entramos, e há sempre um banco onde
sobra espaço que nos baste para nos sentarmos.
Um olhar mais circunspecto e à média
luz, desbrava caminhos entres outros olhares e vultos… e ao mesmo tempo desbasta nuvens de
fumaça. Fixa-se por fim nas paredes onde em cartazes e molduras ressaltam rostos –
todos (ou quase todos) felizes: rostos sozinhos – isolados no espartilho dos
caixilhos; rostos encostados a outros rostos em habituais manifestações
calorosas, ou de circunstância… Fisionomias fidelíssimas, e muitas das mesmas,
certamente, já tendo ali passado por nós… mas que esquecemos
É verdade que não adivinhamos as
vozes pelas fisionomias, pelos gestos ou pela forma do andar. Assim como não
adivinhamos os traços do rosto de alguém, que nunca vimos nem nos falou, por
simplesmente lhe ouvirmos a voz.
Os meus olhos voltam, saltitantes, a
fixarem-se nos rosto que nas molduras continuam estáticos, e sorrindo.
Ao mesmo tempo eu acendia o segundo
cigarro e soprava para o tecto a primeira fumaça. Tive a súbita impressão de
que alguém havia aproveitado um súbito momento de abstracção em que me deixei
levar, e que durara fragmentos de segundo, para naquelas paredes acrescentar
alguns retratos mais… e que esse alguém o havia feito num apagar e acender de
luzes. E entre os retratos que não vira antes, lá estava o rosto redondo e
sorridente do Sr. João Carlos.
Ficámos a conhecer este rosto (o
rosto do Sr. João Carlos) aquando daquela vez que, ao sabor da noite e ao
cheiro do fado, ali nos encontrámos. O Sr. João Carlos é o anfitrião da casa a
quem sempre estendemos a mão para um cumprimento reservado a amigos…
… E outros (outros rostos – que são
sempre mais e mais – e alguns dos mais
são os que a objectiva da câmara fotográfica corta, porque é sempre pequenina
para tantos sorrisos) …
… E pela calada do silêncio,
enobrecem-se vozes que nos despem a alma e nos amaciam o coração… Um silêncio
que acorda o respirar das guitarras que febris trinam… E das molduras não arredam
os rostos que parecem sorrir para nós mas que, na realidade, neles brilham
olhos que não nos vêem (olhos que na película são invisuais, apesar de bem
abertos, cintilantes e doces).
Porém, se esses olhos nos vissem não
nos ofereceriam razões para considerarmos tal prodígio um privilégio: seria um olhar que
não nos transformaria noutras pessoas: não nos acrescentaria valor: não nos
alisava as arestas do destino.
(¿) Quantas e quantas vezes, nas
nossas vidas, já confiámos o rosto à sensibilidade de um fotógrafo ou de um
retratista a coberto do compromisso de captar o nosso melhor ângulo e a nossa
mais bonita expressão?...
– “Silêncio… e a vossa atenção, por
favor…” – pedia o Sr. João Carlos à assistência… e logo passava às
apresentações:
– “Vamos prosseguir a nossa noite de fado.
Aqui às Quintas e Sextas-Feiras, Sábados e Domingos: na “Tasca
do Xico”, em Alfama. E hoje connosco à viola e à guitarra, respectivamente,
Jerónimo Mendes e André Dias, para quem peço desde já uma salva de palmas…” (ouvem-se aplausos). “… E para nos cantar fado, na minha e na
vossa presença, a voz de uma amiga que nos visita (mas uma cara já conhecida
nesta casa): Rosa Maria Duarte”. E soa mais uma salva de palmas.
O Sr. João Carlos, além de
apresentador habitual dos talentos, ele próprio é um talentoso fadista entre os
mais fadistas veteranos do fado vadio…
e é o anfitrião da casa: zeloso quanto à disciplina, princípios e tradições da
mesma.
O troar dos aplausos abafou o ruído
do banco corrido em que nos sentávamos, ao mexer-me. Rosa Maria, passando atrás de mim, ao de leve tocou-me nos ombros, e já sorria – era aquele sorriso
que lhe desconta sempre duas dúzias de anos no rosto… E é o mesmo sorriso que
espreita por detrás da voz que vem do centro do seu ser: da sua alma; dos seus dons; da sua vontade… –
um sorriso que ganha asas e lhe viaja na voz:
– “Se uma gaivota viesse
Trazer-me o céu de Lisboa
No desenho que fizesse,
Nesse céu onde o olhar
È uma asa que não voa,
Esmorece e cai no mar.”
….
Da boca de búzios desse mesmo mar, quantas e quantas vezes
recebemos beijos nos nossos ouvidos… neles deixando sons de que nos recordamos
ainda, e nos recordaremos para todo o
sempre (?).
O sabor do primeiro cigarro da noite;
o vinho nos copos (os primeiros copos também), que lenta e silenciosamente
enxameiam as emoções noctívagas; o lento acordar dos poros da sensibilidade –
poros que acordam como que por encantamento… – por onde os sons nos vão
penetrando até às vísceras da alma:
“Silêncio,
porque aqui mora o fado”.
M. Gama Duarte
(Dedico esta página à minha mulher Rosa
Maria Duarte)
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