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A mão suave
de um deus anónimo
… E foram mais de mil as voltas que contei (…): voltas e mais voltas que
o meu cérebro deu em redor da tal pergunta
que a mim mesmo fazia e ainda hoje faço: Porquê?...
E a pergunta que a mim mesmo faço, ou acaba por se dilui
nos interstícios do meu cérebro com as mais de mil voltas, ou retorna ao meu consciente intacta…
e sem qualquer resposta.
E, a páginas
tantas, paro de agonia ou paro de secura. De agonia ou de secura à semelhança da
agonia, ou da secura, com que hoje acordei… e com a qual (agonia ou secura) às
vezes acordo noutros dias…. E não é que em coisa estranha tenha pensado… ou,
que me lembre, com coisa insólita tenha sonhado... Pois a noite dormida de
ontem para o dia de hoje foi de sono profundo… Mas mal o sono chegou para me
esbater o cansaço do dia que ficou para atrás… E a sede que agora me aperta,
parece-me a mesma do dia de ontem… prostrado e vencido que me sinto… (afinal qualquer um de nós – seres humanos – de quando em vez temos destes dias...)
A verdade é que pouca água tenho bebido que me mate
a sede. E hoje as gotas de água que me serão necessárias para matar a sede,
serão tantas quantos os passos que dei no dia de ontem caminhando meia Lisboa
até que os meus olhos vissem Tejo.
E pensei: “Não sei que parte das águas deste rio
enchem os afluentes, os lagos, os regatos, e os riachos que correm num certo
deserto interior que às vezes comigo parece ter nascido…”
… Não sei se foi resposta para este enigma o que procurava
ontem à noite quando passei à porta da Maternidade Alfredo da Costa – edifício de
onde esperneando pulei para este mundo – mundo este a que já não sei (ou nunca
soube até hoje) de que maneira ao certo
pertenço.
A agente da polícia que estava de serviço à porta
da maternidade, ao dar por mim ali meio perdido, avançou dois passos ao meu
encontro e perguntou-me se podia auxiliar-me em algum assunto. Eu disse-lhe que
me deslocara ali propositadamente para saber se a minha mãe ainda se encontrava
internada em alguma das enfermarias daquela maternidade… mas que provavelmente
não (ela já ali não se encontrava), porque eu nascera fazia já cinquenta e picos anos... (isto uma ironia que
espontaneamente me saiu no momento… – ironia talvez de palidez semelhante à que
àquela hora me pigmentava o rosto).
Mas caso a solícita agente consultasse os arquivos
da maternidade, viria de volta, ter comigo, na posse de todos e mais alguns fundamentos que confirmariam
que a minha mãe não apenas já não se encontrava ali internada, como após o ano
de 1956 jamais voltara a dar entrada nas enfermarias daquela instituição.
Que nunca a minha mãe havia entrado naquela
instituição antes do ano de 1956 já eu o sabia… (nem naquela nem noutra
maternidade… aliás: decerto nunca a minha mãe ocupara o seu ventre com outro que não eu).
Não sei se deva considerar esta exclusividade um
privilégio pessoal (um privilégio que me fora concedido), ou se deva buscar no
facto motivos para me envaidecer… (eu que até não tenho apreço por vaidades…).
Não foi egoísmo da minha parte essa exclusividade: o
útero onde fui gerado ter sido aquela alcofa de carne que apenas eu conheci.
Desta mulher (a minha mãe) fui o único filho, e por
pouco nem eu existia caso ela tivesse adiado a primeira e única gravidez da sua
vida – ela uma mulher que havia deixado passar a sua juventude sem conhecer homem (palavras suas, das
quais bem me recordo)… E só veio a casar aos 39 anos.
Em criança eu entretinha-me bem sozinho.
Embora não me sentindo infeliz (tive uma infância
feliz), vivi esta estranha forma de orfandade que às vezes deixava no meu
espírito uma espécie de rasto de cruzada contra uma difusa mancha de solidão interior – solidão às vezes em
mim entranhada… e sentindo-a tocar-me o lado de dentro das paredes do meu corpo…
Eu podia tocar-me… – sentir-me na minha pele…
… Nasci com os braços “curtos” … e a predestinação,
ou fatalidade, que fez com que
nascesse “assim”, impedia as minhas
mãos de se encontrem sobre o meu corpo num amplo e completo abraço. Se me
abraçasse de forma que as minhas mãos se cruzassem (que nunca se cruzavam da
maneira que desejava…), ficar-me-ia por abraçar apenas metade de mim: ou me
abraçava tocando e sentindo unicamente o peito, ou me abraçava tocando e
sentindo unicamente as costas.
Falava-me um dia a voz do sangue dizendo-me que tinha
irmãos (e tenha-os… e tenho-os). Tenho dois irmãos que muito estimo (um irmão e
uma irmã) do lado paterno. Não cresci à sua beira. Ficámos adultos (quase
velhos) sem termos uma única vez brincado juntos… – coisa que parece ter sido
uma espécie de embirração do destino. Mas acho-me também irmão de mim mesmo e
irmão de todas as gentes e coisas.
Por capricho da sina de quem sou filho, não apenas
sou irmão de mim próprio: sou gémeo de mim próprio. E esperanço-me nesta
relação de fidelidade crónica… (que doença talvez o seja, ou talvez não).
Bebemos – eu e eu – do mesmo vinho, da
mesma fonte surreal e mítica, do mesmo absinto. Sentamo-nos – eu
e eu (eis o nosso corpo comum) à nossa peregrina e intemporal
mesa. Ficamos frente a frente (eu e eu). E sobre a mesa as nossas
taças… e cada uma das nossas duas mãos livres pega na respectiva taça.
Então, erguidas as taças, elas aproximam-se e
tocam-se produzindo aquele subtil e reconhecível som do brinde aquando da celebração
de algo importantíssimo. Depois, lentamente, a taça erguida pela mão direita toca o canto
direito da minha boca, e a taça erguida pela mão esquerda toca o canto esquerdo
da minha boca.
Somos amigos (eu e eu)… e a nossa
amizade certifica-se neste ritual gesto.
Talvez ambos acreditemos numa vida eterna (?)… Mas
qual de nós sobreviverá ao outro?... (eu ou eu?)…
Quantas vidas serão eternas, se houver eternidade?
Pensava nisto ao mesmo tempo que me aproximava de um sem-abrigo – isto já nas
ruas da Lisboa Ribeirinha – um sem-abrigo que sossegava entre a mão peregrina de um Deus anónimo
que o amparava (um claro luar), e uma trincheira de sacos de plástico sem forma
mas cheios de nada e de tudo… E agasalhava-o uma manta rota e da cor do seu
silêncio. Perguntei-lhe:
– “Já dormes, amigo?”
Esperei que me respondesse, mas não me respondeu…
ou eu não o ouvi a responder-me.
(Nunca sabemos quando um sem-abrigo dorme, quando
está acordado, quando nos vê, quando pensa, ou quando respira).
… Pois, o céu (o Sol, a Lua, as estrelas…) é uma beleza…
Mas ninguém deseja tê-lo como seu único tecto…
Esta frase escrevi-a há tempos numa crónica sobre o Luís
– o sem-abrigo de Alcântara (em Lisboa) que mendigava às portas da Igreja de
São Pedro (mendigou… Eu vi-o durante anos). Cumprimentava o Luís e dava-lhe uma
moeda quando trazia alguns trocos comigo na algibeira.
Insisti com o sem-abrigo que encontrara nas ruas da
Lisboa Ribeirinha:
– “Já dormes, amigo?”
Nesse instante ele abriu os olhos e respondeu:
– “Não!… não durmo, amigo”.
Perguntei-lhe a seguir se queria uma moeda. Pareceu-me
que reagiu com indiferença à oferta que lhe fazia… mas acabou por dizer: “Tá
bem, dá cá…”. Então estendeu a mão e aceitou.
Talvez me tivesse agradecido com um obrigado. Mas
para mim o melhor agradecimento, ou retribuição, foi a novela extraordinária e interminável que me contou sobre a sua sorte (ou sobre a sua desgraça), que ouvi com
todo o interesse.
Porém, nada lhe havia pedido, e ele também nada me
havia pedido. Ou talvez eu me tivesse aproximado daquele homem, que nunca vira
antes nem mais pobre nem menos pobre, contando que me desse um pouco de calor
humano e de atenção.
Eu já não falava com vivalma desde o episódio havido
instantes atrás, em que a agente da autoridade em serviço à porta da
maternidade Alfredo da Costa, mostrando-se prestável, avançou ao meu encontro
oferecendo-me auxilio.
Mais tarde, já atravessando o rio de cacilheiro… e levando
comigo Lisboa nos olhos, recordava-me daquele rafeiro que apressado passou por
mim lá para os lados da Rua Alexandre Herculano, e ao qual falei… mas ele sem
tempo para me dar atenção… E recordava-me também daquele outro, não menos
rafeiro que o primeiro, e que partilhava com um velho o patamar de entrada de
uma dependência bancária de fachada envidraçada e iluminada.
Destes serenamente abeirei-me (do velho e do cão)
encurtando os meus passos. Mirei o velho, e perguntei-lhe:
– “Como se chama o seu amigo”?
– “Diogo” – respondeu-me o homem.
Mirei desta vez o bichano, e comentei:
– “Gosto… gosto do nome… e fica bem esse nome ao
seu amigo”.
Aproximei-me mais um pouco, e de mão aberta avancei
para afagar o pelo do dócil rafeiro (tencionava saudar com intimidade e afecto o
pobre bichanito).
– “À confiança” – tranquilizou-me o velho.
Confiante aproximei-me então um pouco mais, e o
animal percebendo aceitou a minha mão.
Ali estavam... O destino tinha-os juntado. E não só
partilhavam aquele exíguo espaço como também partilhariam aquela noite.
Retirei-me minutos depois ao mesmo passo com que me
havia aproximado… e considerei uma vez mais:
– “Diogo fica bem ao seu amigo… e mais uma
coisa posso dizer-lhe meu caro: há animais que merecem mais o nome de gente que
certas pessoas”.
O velho sorriu, e por sua vez afagou o dorso do
animal sem desmanchar o sorriso – um gesto que me dava razão: confirmava o que
eu havia considerado a respeitos dos animais e dos nomes com que os humanos os
baptizam.
Despedi-me com um desejo de “Boa Noite” (foram as
minhas últimas palavras), e segui saltando por cima das pocinhas que as gotas
de luar escorrendo das árvores iam deixando na calçada.
M. Gama Duarte
21 de Outubro de 2013
Saudações
Pascais à CAIS
Pintura Título: habitação Materiais: aguarela, guache, pastel de óleo e seco |
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