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quarta-feira, 21 de outubro de 2015




M. Gama Duarte /2015
(Instalação / Cenário)

Título:
Relicário de memórias - 1
Portal
de Memórias

















Prólogo 


Guardo memórias indeléveis de inúmeros momentos por mim vividos nos tempos da minha infância…
(Lisboa-cidade a minha cidade: a minha “Aldeia Natal).

Vim à Luz num dos blocos de partos da Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa… – berço onde a maioria dos alfacinhas da minha geração nasceu, e onde ainda hoje nasce a maioria dos alfacinhas (assim o creio – e é apenas o acreditar que seja assim … Não posso categoricamente afirmá-lo).

Tenho no entanto notícia de quem veio ao mundo no leito materno… Isto é: no leito onde cerca de nove meses antes os respectivos pais lhe deram origem… – o que será como dizer, ou melhor dizendo: “Pensado, feito e nascido no seio do doce lar”.
E, nesses raros casos – dos que nasceram no leito materno –, as primeiras mãos sentidas (mãos desconhecidas, ou estranhas) foram as mãos de uma certa e experiente senhora (a parteira) que acorria sem demora a casa de quem a chamasse para cumprir a nobre e respeitável missão de se ocupar da mulher grávida e preste a dar à luz.


M. Gama Duarte /2015
(Instalação / Cenário)

Título:
Relicário de memórias - 2
Acredito que as minhas primeiras memórias se ligam a vivências que tive por volta da idade de um ano e meio, ou dois anos (memórias claras em alguns casos): brincadeiras a só (sozinho); momentos íntimos vividos em família; ocasiões em que se confraternizava à mesa com visitas que convidávamos para um almoço ou um jantar, ou simplesmente para um chá… ou quando era-mos nós os convidados em vez de sermos nós os anfitriões; convívios com vizinhos; passeios de lazer aos fins de semana, ou férias gozadas na província; experiências inéditas nos meus tempos da primária… Etc., etc.







Capítulo 1

O “Ginjinha Ideal”
entre as minhas memórias



Em Lisboa ainda existe uma pequena taberna, com o nome “Ginjinha Ideal” na Travessa das Almas n.º 21, a fazer esquina com a Rua de Sant’Ana à Lapa.
Este pequeno estabelecimento com o castiço nome “Ginjinha Ideal”, já existia há cinquenta e tal anos.
 Ao tempo, além de vinhos, de licores, de águas minerais, e de petiscos servidos ao balcão ou à mesa, talvez pontualmente a “Ginjinha Ideal” abastecessem a freguesia de um ou outro produto dos que eu via a minha mãe normalmente comprar nas mercearias… E recordo-me de algumas vezes para lá me ter encaminhado a mando dela, e de me atender um senhor (o Sr. Claudino). Ele vinha ao meu encontro, a sorrir, depois de em primeiramente me cumprimentar do lado de dentro do balcão.
Quando eu saia à rua para ir à “Ginjinha Ideal”, a minha mãe assomava-se àquela janela rasteira resvés a calçada, e dali, do r/chão do n.º 28, ficava vigilante. Via-me entrar na pacata e popular taberna, e a seguir esperava para me ver sair. E depois de eu sair ela continuava à janela, não tirando os olhos de mim, até que eu chegasse à porta do prédio e entrasse.
Algumas vezes demorava-me – o que impacientava um pouco a minha mãe… E tal demora acontecia – o que era frequente – porque  os simpáticos clientes me empatavam com perguntas… – perguntas às quais eu respondia caindo-lhes em graça.

Foto:
M. Gama Duarte

Motivo:
Mercearia
tipicamente portuguesa

Local:
José Franco (Sobreiro / Mafra) 
É desses tempos idos o tradicional, e praticamente desaparecido, comércio local muito típico dos bairros populares de Lisboa. Um comércio que, por exemplo, juntava mercearia, taberna e carvoaria. Lojas onde quase tudo o que era possível ali comprar se vendia avulso (ao litro, ao quilo ou a metro).


  









Capítulo 2

“Peregrinando”



Em criança, e mais tarde em adolescente, conheci várias casas.
Os meus pais pelo menos cinco vezes se mudaram.
É natural eu não ter lembranças da primeira mudança, em que deixamos o 2.º Esq. do n.º 99 da Calçada da Estrela, onde ainda tivemos um ano após eu ter nascido, para irmos morar para a Travessa das Alma.  
Em três dessas cinco vezes que mudámos, as casas que os meus pais alugaram tinham um quintal contiguo à área coberta reservada à habitação…

Uma outra das memórias que especialmente guardo, associa-se à segunda das três vezes me mudámos para uma casa com quintal.







Capitulo 3

O mistério



Havíamos mudado para uma parte de casa (assim se designava a modalidade em que se assinava o contracto para o arrendamento parcial da casa que era objecto do contrato). Tinha eu quatro anos.
Essa parte de casa era no r/chão de um prédio que há anos existiu na Rua de Sant’Ana à Lapa, em Lisboa.
Tínhamos como senhorios um casal de idosos (o Sr. Torcato e a D. Deolinda) que morava no mesmo r/chão. E por obviamente não precisarem de uma casa tão grande, sendo só os dois, partilharam-na connosco durante uns três anos.

Lembro-me de que, nos primeiros tempos, eu amiúde acordava durante a noite. Da primeira vez assustei-me… Fiquei apreensivo não sabendo o que pensar... ou a que atribuir o que ouvia. Pois aquele estranho som, que nunca ouvira antes, pairava quase por todo o interior da casa.  
Na noite seguinte, na altura em que a minha mãe me levava até ao quarto para me deitar, senti receio ao imaginar aquele som insólito a voltar e a inquietar-me.
E então contei tudo à minha mãe: falei-lhe do ruído que ouvira… – da tal coisa que não me deixara pregar olho durante quase toda a noite.
A minha mãe dispensou toda a sua atenção à minha queixa e percebeu a que som eu me referia. Tentou tranquilizar-me… (que não tivesse medo): afinal não existia coisa alguma que eu devesse recear, porque o tal ruido era simplesmente, e apenas, o senhor Torcato a dormir… E explicou-me: “… O que acontece com o Sr. Torcato, acontece com muitas mais pessoas… – (a dormir fazem esse barulho ao respirarem).
A partir de então (da explicação da minha mãe), de vez em quando eu ainda acordava, mas já sem aquele receio que sentira aquando da primeira noite (pois já havia sido informado da origem do estranho som …). Mas só com o passar do tempo me fui habituando, e, mesmo com aquele ruido do ressono do Sr. Torcato nos meus ouvidos, já dormia razoavelmente.
Porém, era tal a minha estranheza e a minha curiosidade, que, mesmo depois da explicação que a minha mãe me dera para o tal ruido à noite, e no silêncio, volta e meia eu dava comigo pasmado a fixar o rosto do Sr. Torcato…. – assim eu ficava à espera que dele se soltasse aquele misterioso ronco – pois não fosse o Sr. Torcato alguma vez ressonar mesmo sendo de dia e estando acordado… Pois se tal acontecesse e eu estivesse distraído, era certo que perderia esse momento, ficando assim por saciar a minha curiosidade.  
Mas nunca tal chegou a aconteceu: nunca vim a assistir ao Sr. Torcato a ressonar de dia e acordado…
Fui ganhando simpatia pelo Sr. Torcato. Pois ele acordado veio a revelar-se uma criatura de um sorriso que nada lhe custava... E só de quando em vez – já aborrecido – a sua voz me falava num tom um pouco rijo e as expressões do seu rosto se tornavam levemente severas. Mas esse seu génio só o mostrava quando me via no quintal empoleirado nas telhas que dividiam os canteiros dos caminhos:
– “Oh menino, pula imediatamente daí!... Olha que me derrubas os canteiros e me espalhas a terra toda, meu traquinas”.







Capítulo 4

A antiga cozinha



Na cozinha existia um fogão de aspecto gigantesco que funcionava a nacos de lenha, e sobre o qual, ainda ao modo antigo, se cozinhava e se aqueciam as águas em pesados e bojudos recipientes em ferro – peças que, com o tempo, iam ficando tão negras quanto o enorme fogão.
Quando este acendido para a preparação das refeições, através da portinhola por onde se enfiava os pedaços de madeira que depois ardiam, escapavam-se das labaredas clarões que quase tudo à volta iluminavam… E eu impressionado, tinha a impressão que algo sempre se escondia nas confusas sombras que se formavam e agitavam nas paredes altas da cozinha.     
Era atravessando a cozinha que se chegava a uma porta em madeira, com postigo, que dava acesso ao quintal, do qual falo no capítulo seguinte.


M. Gama Duarte /2015
(Instalação / Cenário)

Título:
Relicário de memórias - 3





M. Gama Duarte /2015
(Instalação / Cenário)

Título:
Relicário de memórias - 4
































Capítulo 5

O antigo quintal…
e pulando
do círculo luminoso da “ribalta”
para a sombra


Recordo-me desse quintal: tinha árvores; uma selha com um diâmetro de tal largura que, mesmo de braços abertos em arco, eu não tinha qualquer chance de abraçar…
Espreitava para o interior da selha e encontrava-a quase sempre com uma altura de água que me chegava aos cotovelos assim que nela enfiava os meus braços… E, com uma ligeira inclinação, mergulhava nessa água, até ao fundo, uma tábua em pinho com um dos lado ondulado, sobre a qual eu via a dona da casa e a minha mãe a esfregarem à mão roles e roles de roupa… 

  


M. Gama Duarte /2015
(Instalação / Cenário)

Título:

Relicário de memórias - 5

























M. Gama Duarte /2015
(Instalação / Cenário)

Título:
Relicário de memórias - 6
























M. Gama Duarte /2015
(Instalação / Cenário)

Título:
Relicário de memórias - 7



























Havia também flores em canteiros... e árvores.
Assim lhes chamava o Sr. Torcato: canteiros… E aí, nos canteiros, a terra ficava separada dos caminhos por fiadas de telha mourisca cravadas ao alto e a fundo como estacas. E eu entretinha-me, manhãs e tardes, passeando de braços abertos sobres esses cordões de telhas, imaginando-me, talvez, um equilibrista de uma qualquer companhia de circo tipo saltimbancos. Porém, raramente eu conseguia esquivar-me às repreensões ríspidas do Sr. Torcato… E lá me gritava ele uma vez mais:
– “Oh menino, pula imediatamente daí!... Olha que me derrubas os canteiros e me espalhas a terra toda, meu traquinas”.
Em obediência ao Sr. Torcato eu, cabisbaixo fazia um interregno na minha actuação pulando do círculo luminoso da ribalta para a sombra… mas cheio de vontade que o Sr. Torcato me voltasse as costa e se fosse afastando e desfazendo boamente no seu rosto o ar zangado com que me tinha olhado. E logo que eu persentia o Sr. Torcato longe, voltava ao meu número de circo.








Capítulo 6

E sempre Lisboa…



À parte as vezes em que vivemos em casas que tinham quintal, conta aquela vez em que vivemos em Campolide no rés-do-chão esq.º de um prédio cor-de-rosa sem quintal (mas com varanda nas traseiras), cuja fachada do lado da entrada principal se colava a uma larga e longuíssima escadaria, que, para todos os efeitos e propósitos, era a rua.
(Destes tempos são também os momentos que relembro na crónica que escrevi e publiquei neste blog no dia 20 de Junho deste ano, intitulada "Fernando Gomes Mana promoveu e pessoalmente concretizou a volta a Portugal em triciclo a pedal" - crónica que dediquei a este meu grande amigo de infância).   

Mas três anos mais tarde estávamos a morar num pátio que se situava num bairro popular da mesma freguesia (Campolide). Um pátio, ou uma vilazinha como há quem também lhe chame. Viviam lá oito inquilinos (oito famílias), a contar connosco.



Na foto:

Maria do rosário Duarte

e João Duarte
Mas sempre que a hora era de mudar, os meus pais nunca procuraram lugar para vivermos que não fosse na cidade de Lisboa.

Gostei sempre dos novos sítios, da nova casa e dos novos vizinhos.
Costumo dizer que tive uma infância feliz… – afirmo-o com fundamento e verdade… sem reserva alguma – tendo em parte contribuído para que o afirmo, um quase mítico bem-estar – bem-estar que se associa à circunstância de sempre ter havido ao meu dispor um espaço com ligação à casa onde eu podia brincar ao ar livre e sem perigos: umas vezes um quintal e outras uma razoável área em frente da casa, ou do prédio.

De todo este passado guardo memórias indeléveis.
De algumas dessas memórias já falei em ocasiões diversas (em páginas de outras crónicas).









Na foto:

Maria do Rosário Duarte 






















Havia também em Campolide, como era natural sendo uma freguesia com raízes populares, daqueles estabelecimentos que juntavam mercearia, taberna e carvoaria.
Quase sempre eu acompanhava a minha mãe na rotina diária das compras.
E não tardou que ela passasse a incumbir-me, uma vez por outra, de pequenos recados munindo-me de um cabaz ou de um saco, e confiando-me o dinheiro mais ou menos certo. Mas sempre com a recomendações da ordem: “Não percas o dinheiro e não te esqueças de nada, está bem meu filho?”.

Dificilmente eu viria a esquecer-me de alguma coisa ou a perder o dinheiro… pois, muito cautelosamente, a minha mãe preparava tudo ao pormenor para que o recado corresse direitinho: uma lista com tudo apontado, e a seguir, no mesmo papel onde escrevia, o dinheiro embrulhado após contado ao tostão.








Capítulo 6  

O azeite derramado


Porém, certo dia tudo viria a passar-se de modo diferente, relativamente aos recados que eu já fazia à minha mãe. 
O que foi à partida contrário ao costume, foi que não havia lista. De resto, havia o cabaz (ou o saco), o dinheiro e a habitual (a imprescindível) recomendação – que daquela vez variou um pouco, porque não incluía lista e, na vez da lista, ouvira especiais instruções da boca da minha mãe:
– “Hoje vais ter que tomar muita atenção, filho, porque levas uma garrafa de vidro para nela trazeres um litro de azeite… (hoje é só o que vai trazer). A garrafa leva-a no saco. Portanto vai e vem com muito cuidado, filho”.

Lá fui eu direitinho, e todo zeloso, lembrando-me a todo o momento das palavras que ouvira da boca da minha mãe... E, apesar de todo o zelo, viria a suceder o inimaginável (o que não era bom eu imaginar…)
No regresso, sem que o conseguisse evitar, o saco desliza-me por entre os dedos e embate no chão. Oiço o estilhaçar da garrafa, e de imediato assisto ao azeite jorrando para fora do saco e a cobrir de um dourado gorduroso e transparente as pedras da calçada.
Fiquei como que petrificado e de olhos fixos no desastroso aparato a meus pés – algo que se me afigurava horrível e irreparável… (depois daquele percalço, sem o dinheiro e sem o azeite, como é que me iria correr a vida nos minutos e horas seguintes?)
Não me recordo se chorei, ou se, pelo contrário, me contive.  
Eu teria na altura os meus oito ou nove anos de idade.

Passou no momento alguém que, ao dar conta da minha trágica situação – daquela evidente fatalidade –, e reparando na minha aflição, parou junto a mim e me falou.
Eu mantive-me de cabeça baixa por alguns segundos, e sem mudar a direcção do olhar. Reconheci no entanto a voz desse alguém que havia parado bem perto de mim – daquele alguém que se sensibilizara com o meu drama e estava pronto a estudar uma solução que me aliviasse a angustia.
Era o Sr. Fernando… Um vizinho… (um dos vizinhos mais simpáticos… Vivia com a família: a sua mulher, a quem chamam D. Maria, e a filha Isabel que era uma miúda um ano mais velha que eu, e com a qual eu nem me dava bem nem me dava mal… calhava apenas brincarmos juntos (não muitas vezes) sem nos preocuparmos com a possibilidade de ficarmos amigos.

E então, compassivamente, o Sr. Fernando perguntou-me:
– “Como te aconteceu isso, rapaz”?
E eu:
– “Não sei, Sr. Fernando... Não sei… Olhe!...”
E da segunda vez que eu disse Não sei, encarei o Sr. Fernando, e pareceu-me que ele olhava para mim, e olhava para o chão, como se o sucedido nenhuma importância tivesse... – atitude da parte do Sr. Fernando que eu no momento não percebi… (talvez eu chagasse a admitir uma ou outra das duas hipóteses em que pensei: ou o Sr. Fernando é santo e vai aqui acontecer um milagre, ou é mago e vai fazer uma magia).    
E o Sr. Fernando olha de novo para mim, e diz-me:
– Não te preocupes, rapaz! ... levanta só o saco que que tem os vidros, mas com cuidado, para o botarmos no lixo, e vem daí comigo…
Voltei à mercearia acompanhado do Sr. Fernando, por sua decisão. E fui percebendo pelo caminho que havia uma a séria esperança de solução para o meu problema.  
Assim que chegámos junto ao balcão da mercearia, o Sr. Fernando chama à atenção o dono da mesma, e pede-lhe:
– “Sr. Manel, arranje-me aí, por favor, uma garrafa de vidro e bote-lhe um litro de azeite… E acomode-a bem num saco… (eu pago)… É aqui para o nosso rapaz que teve um azar ali adiante, na rua… e lá se foi a garrafa e o azeite…”

E assim, como conto, recuperei o que tinha perdido graças à generosidade daquele vizinho.
E é sempre com apreço e gratidão que o recordo. E sempre que surge no meu pensamento aquele episódio, não é raro perguntar a mim próprio:
– “Será que, de entre toda a vizinhança desse tempo, de quem tenho lembranças, mais alguém além do Sr. Fernando teria agido para comigo com semelhante gesto?...” E a resposta é sempre sim, porque as memórias que conservo desses tempos e das pessoas apresentam-me razões para admitir que sim.






Capítulo 7

Os bairros,
o bairrismo
e a sua boa gente



Na foto:

 Maria do Rosário Duarte
E o certo é que, ao longo dos anos que vivemos naquele popular pátio ou vilazinha), sempre por lá passou boa gente. Gente que recordo com simpatia e alguma saudade.
Entrava-se por um portão largo que ora se encontrava fechado ora se encontrava aberto. Mas nunca eu dera conta de se encontrar encerrado à chave… e admirava-me com o facto de nunca na sua fechadura eu ver uma chave. Mas, como em qualquer portão normal, nele existia o respectivo orifício por onde às vezes, por brincadeira e curiosidade, eu espreitava ora de dentro para fora ora de fora para dentro, observando ambas as perspectivas. Porém esta situação de o portão se encontrar quase sempre escancarado, deixou de me fazer confusão uma vez que as oito habitações da vilazinha tinham a obvia possibilidade de serem individualmente protegidas com a chave que a cada uma pertencia.




M. Gama Duarte / 2015

(Instalação/Cenário)



Título:

Relicário de memórias - 8 




M. Gama Duarte / 2015

(Instalação/Cenário)



Título:

Relicário de memórias - 9 
…E lembro-me nitidamente de quase todos os rostos que aí conheci, e de alguns dos nomes dos moradores:
O Sr. Aniceto e a D. Victória (um casal de alentejanos de Alcácer do Sal, que tinham um gaiato que se chamava Custódio); O Sr. Arnaldo e a D. Ascensão (um casal progenitor de uma grande e bonita família: filhos e netos… Ele (o Arnaldo) um profissional de carreira na Industria Hoteleira – e que ainda hoje é proprietário de um Restaurante na zona dos Anjos, em Lisboa. A amizade entre nós (eles e nós) ainda hoje se conserva, e compara-se à amizade que naturalmente existe entre os elementos de uma família com laços de consanguinidade, e os une.











... E prosseguindo nesta invocação: o Sr. Afonso e a D. Cândida (um casal em que ele trabalhava por turnos, por ser motorista da Carris, mas que também, nas horas vagas, era artista porque pintava quadros – o que me despertou um especialíssimo interesse); o Sr. António e a D. Madalena (um casal em que ele trabalhava nas linhas ferroviárias da CP. E quando pela altura do Verão, assim que entrava o mês de Julho, era homem que não perdia a tradicional festa ribatejana do Colete Encarnado. E lá ia ele para Vila Franca de xira); uma senhora, de quem o nome esqueci, que era hospedeira na TAP e vivia com a filha. A filha era uma petiza com um certo ar de criança estrangeira, e tinha um sorriso que enternecia… Mas que às vezes parecia-me triste e frequentemente chorava; o Sr. João e a D. Maria José (um casal em que ele era Bombeiro Municipal. Tinham uma filha com idade para de andar na Pré-Primária, mas que passava os dias na companhia da mãe). E lembro-me de o Sr. João umas duas vezes me levar ao Cinema Cine-Arte, onde em serviço como bombeiro fazia vigilância.

E não poderia deixar de referir o Sr. Augusto e a D. Ana Maria.
Era um casal em que ele nas horas vagas, à mão, coloria fotografias… E para isso possuía uma enorme caixa de lápis de variadíssimos tons, que ele dizia só se venderem em lojas da especialidade, precisamente por os lápis serem também especiais e caríssimos. E tendo eu ficado fascinado e interessado naquela modalidade artística do S. Augusto, quis imitá-lo.




Desta feita aventurei-me com os lápis que eu utilizava para colorir os desenhos que ia fazendo em papel comum. E, passado três dias, já tinha conseguido destruir lá em casa uma meia dúzia de fotos das que os meus pais tinham guardadas em álbuns. E este insucesso acabou por ser o suficiente para me dissuadir.





M. Gama Duarte / 2015
(Instalação)



Título:

Relicário de memórias - 10





M. Gama Duarte / 2015

(Instalação)



Título:

Relicário de memórias - 11









































M. Gama Duarte / 2015

(Instalação)



Título:

Relicário de memórias - 12


















M. Gama Duarte / 2015

(Instalação)



Título:

Relicário de memórias - 13 

































Mas eu tinha outras oportunidades de a mim próprio provar que havia coisas que eu podia fazer com melhores resultados… E não viria a ser o fracasso com as fotos a anular o orgulho que eu sentia por a vizinhança me confiar todos os anos, pela altura dos festejos dos santos populares (Santo António, São João e São Pedro), a missão de vistosamente engalanar a vilazinha.


M. Gama Duarte / 2015
Encarregavam-me então de realizar o peditório para a causa indo bater a todas as portas. A tarefa seguinte era deslocar-me à papelaria para comprar os papeis de cor e uns largos metros de fio de algodão. A cola era preparada artesanalmente por mim, criando uma papa a partir da mistura de uma quantidade de farinha de trigo, o quanto bastasse, e água.





Na Foto:

Gato espreitando os pardais

nos beirais 
De resto era o trabalho da execução, que levava o seu tempo mas que muito prazer me proporcionava, e que só dava por concluído quando o espaço do arraial estivesse completamente embandeirado.

Num certo sentido não era com menor entusiasmo que se vivia o Carnaval (pelo menos eu e resto da miudagem do bairro)...
Porém, no caso do Carnaval, eram dispensadas as fiadas de bandeirinhas de três pontas e às cores, esticadas a ligar as casas, sob as quais, portanto pelos santos populares, marchavam os bailaricos… Pela altura do Carnaval, eram sim as máscaras, as serpentinas, os papelinhos, os cheirinhos de torcer o nariz de enjoo, as bisnagas, as partidas de chorar a rir e as fantasiazinhas pirotécnicas com que a garotada, e os adultos mais foliões, se divertiam.







Capítulo 8

“Despertares”



M. Gama Duarte /2015
(Instalação)

Título:
Relicário de memórias - 14
Viviam-se ainda os tempos de um acentuado conservadorismo e repressão sombria. E imperava (ou impunha-se) o entendimento de que era boa prática (ou mesmo um imperativo moral) nas escolas separarem-se os rapazes das raparigas. E dando-se o caso de inevitavelmente se aproximarem, defendia-se que era de todo prudente vigiar-se o seu convívio e os seus comportamentos.































M. Gama Duarte /2015
(Instalação)

Título:
Relicário de memórias - 15






Excepção à regra era, por exemplo, a Escola de Artes Decorativas António Arroio (uma escola mista). Frequentavam-na em simultâneo raparigas e rapazes.
Fui aluno  dessa escola, tendo nela feito cursos entre a década de 70 e a década de 80, e onde tive como colega de turma um dos notáveis músicos portugueses da actualidade em viola clássica, de nome Silvestre Fonseca.  
Todos os que por lá passámos tivemos professores, cuja personalidade e talento como artistas e docentes, nos ficaram na memória. E aqui recordo alguns dos mesmos: Vasco Lucena; Renato Torres; Abreu Lima; Dorita Castel’ Branco.

Vivia eu ainda naquela popular vilazinha, quando em boa hora, no ano de 1973 ou 1974, ingressei nos cursos da Escola António Arroio. Chega finalmente a minha oportunidade de, a partir de então, prosseguir na minha caminhada no universo das artes numa escola especializada.







M. Gama Duarte / 1973
(Pintura)

Título:
Bosque ao crepúsculo  



















Em Casa ia fazendo os meus exercícios (as minhas experiências caseiras): as minhas pinturazinhas… – os meus primeiros quadros… (as minhas iniciações, em que ousadamente ia utilizando os clássicos materiais de pintura).
Fui fazendo… fazendo… Sempre com um redobrado gosto… (quase que compulsivamente… Pois era enorme o meu entusiasmo).










Capítulo 9

A tela


E um dia lembro-me do Sr. Fernando… E de como lhe estava grato… e por isso mesmo não o tinha esquecido…
E tinha então a oportunidade de lhe provar a minha gratidão oferecendo-lhe um quadro pintado por mim (algo que mais pessoal não poderia ser).
Na altura em que me ocorrera a ideia, o Sr. Fernando e a família já se tinham mudado para um outro ponto do bairro… mas eu sabia para que ponto havia mudado… Faltava unicamente ter a referência da rua e da porta.
Na praça, nos dias das compras, a minha mãe cruzava-se amiúde com a D. Maria e conversavam. E eu vim a saber que afinal o Sr. Fernando e a família moravam novamente numa vilazinha.
Já sabendo o endereço certo, um Domingo levantei-me cedo, peguei no presente já embrulhado desde o dia anterior, e pus-me a caminho.
Cheguei e toquei. E foi o próprio Sr. Fernando que veio ao meu toque, e me abriu a porta.
Logo me reconheceu, embora surpreendido…
Talvez tivesse sido eu a primeira pessoa que pela manhã daquele Domingo lhe tocou à porta.
Olá, catraio!.. Como tu cresceste! – admirou-se. Porém, a meu ver nada no Sr. Fernando tinha mudado – foi como se tivesse sido um dia atrás (no Sábado) a última vez que estivemos um frente ao outro… e igualmente pela manhãzinha.
O Sr. Fernando Aparecera à porta da maneira como era hábito, quando fazia bom tempo, os homens andarem comoda e descontraidamente nos ambientes bairristas, em que toda a gente se conhece. Isto é: meio desnudados do umbigo para cima.
Era assim o típico (o preceituado…), e a este propósito eu cheguei a acreditar que só quando eu crescesse – já homem feito, com ombros e braços que se vissem – me seria reconhecido o direito a usar dessas camisolas interiores brancas de alças, a ajudarem a sublinhar a minha masculinidade.

Pairava em redor do Sr. Fernando uma fragrância que me era familiar e que logo relacionei com o after-shave que o meu pai em casa usava para a barba – impressão que me informou que o Sr. Fernando usava o mesmo after-shave que o meu pai usava.
A semelhança entre o Sr. Fernando e o meu pai começara pelo aspecto de serem ambos de estatura alta e magra…  e, com efeito, eu dera conta naquela manhã de que ambos gostavam do mesmo after-shave – o que constituía uma segunda semelhança.     

O Sr. Fernando ficou surpreendido ao ver-me, mas logo me franqueou a entrada da sua casa com aquele sorriso no rosto que, eu em verdade, já não via há mais de um ano.
Entra!… Entra miúdo… e fica à vontade… Estás crescido, pá!.. Lembraste-te de nos visitar, foi?... Vens mostrar-nos alguma coisa?... Já sei que agora fazes pinturas…
Sim, agora ando a pintar, Sr. Fernando… E vim cá para lhe oferecer um quadro meu… é para recordação.
Aí sim?! ... Olha que surpresa!... Fico muito contente e agradecido… e até mesmo emocionado com a tua lembrança…

Apareceram logo a mulher e a filha, que também mostraram agrado em me verem.
Então o Sr. Fernando, na presença da família, abriu o embrulho para que todos vissem o quadro. E todos nele fixaram o olhar, demorando-se um pouco. Seguiu-se um sorriso e um aceno de cabeça – sinais nos quais eu já lia as palavras que viria a ouvir na voz do Sr. Fernando:
Está bonito, garoto!... Si senhor!... Muito Obrigado…– E isto ao mesmo tempo que ele dava dois passos na minha direcção, com a tela pendendo da sua mão direita. E, tendo o seu braço esquerdo livre, com brandura mas sem lhe faltar a firmeza, apertou-me contra o seu perfil num abraço longo.

O Sr. Fernando e a D. Maria já não estão entre nós. Mas sei que o quadro desta estória real ainda existe… algures… E provavelmente em boas mãos!




Ao jeito
de epílogo
(o regresso)


Em finais da década de 70, veio a ser o tempo do regresso.  
Eu com os meus pais tivemos a oportunidade de alugarmos novamente uma casa (uma cave) num antigo prédio, com quintal, na Travessa das Almas, à Lapa. No 1.º andar morava uma senhora idosa e sozinha, e no rés-do-Chão um casal relativamente novo, e que tinha dois filhos. 




Autoria da Foto:

M. Gama Duarte / anos 70



Título:

Surpreendido no telhado consertando o seu pombal

Personagem na foto:
Aníbal - um velho amigo,
e excelente marceneiro de ofício
Local da foto:
Lisboa (Lapa)
  




















...

Então, já eu jovem, voltava a entrar de vez em quando na antiga taberna “Ginjinha Ideal”… Mas nesses novos tempos para tomar simplesmente um café. E provavelmente não sendo os mesmos rosto que eu olhava e cumprimentava e não sendo os mesmos rosto a olharem-me e a retribuírem o cumprimento. Não que à memória me viessem algumas feições, que não tivesse esquecido, o nos presentes não reencontrasse essas feições… Antes, talvez, nesse tempo da revisitação dos mesmos lugares, eu não tivesse pensado na possibilidade de reencontrar as mesmas pessoas do antigamente…
Assim como nesse tempo da revisitação estaria fora de hipótese eu escrever uma crónica do género (e com o espírito) desta que agora termino, e a que dou o nome de Portal de Memórias.
          
  


M. Gama Duarte
06 de Outubro de 2015

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