Reflexões de Cirilo...
e a sua descoberta do gato que
queria ser
instrutor de voo
Em
certas horas vividas pelo pacato e solitário Cirilo – horas de algum azedume –,
ele questionava-se: “O que serei eu num próximo, ou num distante, amanhã ? ...
E o que hoje mesmo, afinal, eu sou?”. Eram as suas inquietações metafísicas… (ou não tão metafísicas
assim).
M. Gama Duarte / 2016
Tema:
A memória,
o presente e o intemporal
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Uma vez
mais Cirilo ali se encontrava sentado à mesa numa das esplanadas de café, que
habitualmente frequentava na cidade onde havia nascido... E constatava (não
seria, por ventura, a primeira vez que o assolava tal pensamento):
“Ganhei um certo sentimento de afecto pelos objectos, e sítios onde me posso sentar… seja à mesa de uma esplanada, como é o caso
(agora), seja à beira de um lago num qualquer jardim desta cidade”.
E estes pensamentos surgiam-lhe,
não porque de imediato Cirilo associasse o mero repouso, ou o mero lazer, ao acto de se sentar… (não era essa a razão daquele seu sentimento de afecto pelos objectos, ou sítios, onde se podia sentar).
Cirilo
associava esses objectos, ou sítios – tão comuns no seu cotidiano e onde se
podia sentar (quaisquer que eles fossem) – a algo muito diferente. E ele tinha
a explicação pronta (que lha pedissem – a explicação –, que ele logo a apresentaria): “É a atitude de esses objectos, ou sítios, me
aceitarem… – ou o carinho de receberem o meu corpo”.
* * *
M. Gama Duarte / 2016
Tema:
A memória,
o presente e o intemporal
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Era
verdade que algo nessas coisas e nesses sítios lhe fazia lembrar os braços e o
ventre da sua mãe... – os braços e o ventre da sua mão ganhando aquele jeito
que por fim era o colo que aconchegaria Cirilo.
Aí,
nesse colo, ou regaço, Cirilo verdadeiramente descansava e dormia o seu sono mais
perfeito.
Os
“colos, ou regaços” que hoje “aninham” Cirilo, não têm esse calor… O calor que
neles sente é o calor que o seu próprio corpo produz (é o próprio corpo de
Cirilo que aquece esses “colos, ou regaços”)… – por isso é um calor solitário.
Esses
regaços: bancos e cadeiras de esplanadas de cafés, de Cervejarias ou de
jardins, todavia são para Cirilo regaços onde não é fácil a sobrevivência. E Cirilo questionava:
“O que serei eu um dia???... – lá longe
(não sei daqui por quanto tempo ou por quantos anos, ou por quantos segundos)”.
E mesmo sobre o presente Cirilo questionava:
“O que restará de mim hoje?... (Sim!... –
pergunto)
Estou sentado neste banco alto fixo ao chão, e o balcão dista do
meu peito cerca de palmo e meio… e pergunto: o que resta de mim hoje de mim e ocupa, neste
momento, este assento onde me sinto confortável?”
Cirilo, quando
escrevia, recorria a miúde a uma linguagem metafórica. E por vezes confiava o que escrevia à leitura de um amigo. E num desses textos ,propósito deste tema, esse
amigo leu:
“Sobre o acento deste banco, talvez nada mais de importante se encontre que o indispensável de mim: aqueles pedaços da mente
que me permitem o elaborar as ideias e autorizam a transmissão dessas mesmas ideias
à mão que as descarrega na superfície branca desta folha de papel. E, para
efeitos da escrita, a responsabilidade recai essencialmente no dedo polegar, no dedo indicador e no dedo médio… Pois são estes três dedos que asseguram
o empunhar com firmeza o instrumento com que escrevo”.
* * *
Daí por
minutos já não encontraremos Cirilo sentado àquela mesa de café. O que resta de si abandonará aquela cadeira. Cirilo
regressa ao mundo concreto logo que os seus pés reiniciem a caminhada (uma
caminhada que será tão lenta quanto afoita… – afinal o que significa para Cirilo
o tempo?...).
M. Gama Duarte / 2016
Tema:
A memória,
o presente e o intemporal
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Cirilo
olha-se. Soma-se palmo a palmo – faz a contabilidade ao que resta de si (ao que é)... Afinal ainda se encontra
razoavelmente inteiro.
– “E do dia de hoje?... O que restará dele?” –
Pergunta Cirilo à fivela do seu cinto ao mesmo tempo que confere se o cós das
calças está situado conveniente. Cirilo quer uma resposta!.. (será ainda dia?...
Será já noite?).
* * *
... E, a enfeitar o azul, um círculo com um semblante de tal maneira diferente que não o informa sobre o que vê: se Lua se Sol.
M. Gama
Duarte / 2016
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Assunto do Desenho:
O gato que desejava ser instrutor de voo, tal como o seu amigo (o gato Zorbas) que é um dos personagens da “Historia de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar” da autoria do escritor Luís Sepúlveda.
Esse círculo roça um dos telhados: insinua-se num horizonte de telhas, de antenas combalidas, de chaminés num arfar mortiço... E um gato preto que farejava por perto resolve trepar a um décimo andar. O gato aproxima-se do círculo (que nem Lua nem Sol).
Entretanto o gato pára e espreguiça-se… e lambe, quase que libidinosamente, uma das patas… E prossegue. Entra por fim no círculo, ocupando o seu centro. E desta vez pára para se deitar.
– “O que lhe irá na cabeça daquele gato? –
interroga-se Cirilo. E Cirilo vai-se esforçando na tentativa de, mentalmente, alcançar os
intentos do gato… E mesmo que mais longe Cirilo não chegue, ou seja: à verdade, pelo
menos Cirilo imagina. E nisto chega a uma conclusão:
– “Mais um felino com a ambição de vir a ser um
afamado instrutor de voo”.
M.
Gama Duarte
21 de Maio de 2016
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