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sábado, 14 de fevereiro de 2015



Autor: M. Gama Duarte / 1981
Título: O cavalo veloz do pensamento (na imparável cavalgada da fantasia)
Materiais: tecido, tinta da china e lápis de cor sobre papel

 






A libido de Fénix
(invocação dos mitos) 





Porque não, procurarem-me aqui? … –  o  lugar
mais óbvio… onde também me procuro…

O lugar onde procuro os claros túneis do tempo,
e entro em mim sem ter que bater
a qualquer porta.


Aqui vos espero…

Podeis rir…
(Talvez não me tenham visto
ao passarem à minha beira…)
… Sei que não vos acenei
quando por mim passastes:
… Os braços pesavam-me
sobre a folha de papel em branco
que jaz nesta mesa suspensa
na ponta das asas de Fénix – folha que já
mil vezes rasguei…
Mas que resiste… lisa, branca, marginal…
que se auto-recicla.

Sim… – folha que mil vezes rasguei,
contorcendo e desviando cursos de rios e riachos de azul…
E longe esses rios e riachos irão formar lagos e oceanos…


Mas vinde.
Se chegardes já noite,
com o que restar das minhas forças
darei vida a esta taça, e ergue-la-hei     
como se fosse a última pincelada
de um momento de inspiração…
e farei desta folha branca
um cuco de papel
que não me deixará adormecer
com o seu canto alucinado…
... E celebrarei a noite.

Mas ainda vos espero.
Não vos exigirei
nem o soluçar súbito de um sorriso…

Podem até ocultar o rosto – se essa for
a vossa vontade…
mas, pelo menos,
tragam ao colo
o vosso coração…

Quem sabe
se até eu próprio já perdi o sorriso…
e se oculto o rosto
para castigar os meus olhos…

Não tenho olhos redondos como salvas de bronze,
ou como redondos ventres prenhes de esperança…
Ou redondos como arenas habitadas
por sátiros e Minotauros em delírio.
Não tenho olhos redondos como o tampo
desta mesa a que me sento,
e onde, ao lado desta simples folha de papel em branco,
nada mais cabe
além de um céu turquesa,
de um poema em chamas,
de um cais esquecido
e de um transbordante cálice
de libido de Fénix.


Mas vinde…

Se não vierdes…
partirei desde cais…
… Partirei…
Mas que seja tarde…
não vá alguém lembrar-se
de matar o que resta de inocência
nas asas da loucura.





M. Gama Duarte

16-07-2008                                                                               
                                                                                                               

        


Titulo: A janela
Materiais: Aguarela, guache e pastel
Suporte:Papel  





M. Gama Duarte

Título: Firmamento





Não!... – não me cansei das paisagens



Olho
e vejo aquela parede branca,
e é como se nela olhasse o infinito...
Nunca assim tinha olhado para uma parede branca!...
Quem sabe
se foi desta vez que enlouqueci (?)

Mas o infinito
de tudo
é senhor :
tudo tem
(ou talvez nada tenha…)
Os loucos… – esses também tudo têm
e tudo sabem…
ao mesmo tempo que nada têm
e nada sabem…

Mas eu…
Eu não me cansei das paisagens...
… E não me dão sono
os crepúsculos
nem as fontes sob o luar
ignoram a minha sede…
E eu…
afinal
talvez acredite
que o infinito de tudo é senhor.

… E aquela parede branca,
por tudo ter
e nada ter,
come de mim…
… Devora-me os olhos!...
mas nem assim
me cansarei das paisagens.




M. Gama Duarte

12-08-2007 



terça-feira, 10 de fevereiro de 2015


M. Gama Duarte 81
Sem título
Desenho, pintura  e colagem (técnica mista)




Na sombra de luz
de um certo luar de Vézac




Tinham chegado já tarde. A lua já alto (bem alto…)
… E o céu ali (parecendo-lhes tão perto): tão próximo como longínquo: sério e pleno – tão pleno quanto o melhor de si: imanente… e como fundo ideal para o mais belo da luz; para o mais belo dos brilhos… – aquela luz e aquele brilho que, assim como eram, só mesmo as estrelas…

Para trás, a uma distância imensurável em tempo e espaço concretos, uma experiência que deixara um inabitual rasto de silêncio, de aceitação e de compaixão (para a compreensão de certas verdades, usarmos exclusivamente as faculdades próprias da inteligência, ás vezes é pouco (um reduzido recurso)… e só a sabedoria nos faz chegar à razão e nos permite reconhecer as iluminadas respostas.

Tinham chegado já tarde. A lua já alto (já bem alto…).
… E o céu ali (parecendo tão perto): tão próximo como longínquo…

Eles prescindiam de um discurso elaborado a custo de palavras… – substituíam-nas pela percepção de um remanescente calor que lhes ficara – um especial calor experimentado na palma das suas mãos… – Um calor que benignamente ainda permanecia como que grudado à aura de um e do outro, e que lhes tocava o peito…
Recordavam o tal momento, revivendo-o então em memória: momento-memória: recém-nascido… A prece e, enfim, a celebração… e o louvor à Vida… à VIDA!... (os anjos haviam regressado pelas mesmas escadas de ouro por onde haviam descido dos céus… e haviam regressado sozinhos, porque, para aquela que haviam visitado, ainda não era chegada a hora… (o supremo divino a poupara)… Milagre?... “Ressurreição”?... – o que em verdade havia sido era um segredo à guarda do destino.

… Na sombra de luz eles falaram da fé…
Fé que é alimento e sustento da esperança.
Fé que se revela em expressão colectiva – a fé que move montanhas, a fé que alimenta peregrinações. Falaram da fé individual que se vive em solidão, e em silêncio – a fé que se identifica como um sinal de que, em compromisso com algo de valor superior em que se acredita, se vai trilhando o caminho.
… Mas a fé vivida em comunhão (em partilha), inspira-nos pensamentos que nos vão revelando, e convencendo, de que na luz é a forma de estar que permite a todo o ser humano encontrar a melhor maneira de se pacificar com o próximo e com o mundo.

Por fim, serena e Intuitivamente, eles fecharam os olhos… (já sabiam que fechar os olhos é ficar vigilante). Centraram-se em si próprios – num eu/essência e num nós/essência… num eu (e nós) com um certo sentido de totalidade)... um eu (e nós) alcançados por recompensa no culminar de uma fuga em processo audacioso de libertação dos contornos que limitadamente identificam o ser humano no plano corpóreo mais densificado…
… Nesse processo audacioso de libertação entregamo-nos na conquista de um eu, ou de um nós, impessoal… sem limites... Apaga-se neste sentido a percepção visual e palpável dos nossos contornos físicos… e é o encontro (ou reencontro), por fim, com uma auto-proposta de individualidade alternativa que pressupõe a auto-projecção num plano que se traduz, num certo sentido, em “trans-dimensão”

E é a renúncia, a ruptura, a repulsa e a negação das reacções e relações egóicas de sobrevivência – efeito oposto ao efeito de espelho (banidas que sejam as comuns fraquezas narcísicas).

É certo (ou imaginação) que às vezes temos a sensação de que não nos queremos ver, outras de que não queremos encontrar-nos em lugar algum, e ainda outras de que não nos reivindicamos em nenhum espaço ou cultura temporais.
Mas podemo-nos observar… E essa atitude de auto-observação podemos assumi-la como um exercício valioso e consequente…   

Qual o lugar das nossas necessidades comuns neste plano físico que classificamos de tão real?... 
(Em vez de uma resposta pode surgir o espanto perante a descoberta de mais uma ilusão… E é neste dilema, quase enigma, que encaramos tudo como que mergulhados na única “realidade”… (o sermos de facto alguma coisa, mas finita segundo o entendimento mais ao nosso alcance, num âmbito e num domínio a que nos habituámos).
Às vezes o Isolamento…. outras vezes o retiro!…. – (não solidão)  – e questionamos: onde estamos?... quem somos?... o que valemos?...
Cultiva-mos, por vezes, o isolamento (somos nós o retiro de nós próprios – é o que acabamos por aceitar).
Cultivamos a distância… – a distância versos absoluto – A “nossa obra-prima”: coisa/consequência que depois orgulhosamente acarinhamos como coisa só nossa…  (“… coisa nossa que tanto trabalho nos dá”).
… E quanto sofrimento por nós suportado no processo?! ... Tanto sofrimento que, calhando, não é assim tanto. Mas se for (sofrimento), não será só nosso (é do mundo… e também será do divino que nos criou…
Quem sabe?!...)

                                                                                      


M. J. Gama Duarte

  

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

M. Gama Duarte
M. Gama Duarte









      Alentejo 





… E que haja azul… Que haja céu…
(o céu cura todas as cegueiras)…
… e as árvores que se agacham para que lhes chegue aos ramos mais altos


Quando chega o momento em que verificamos que as coisas à nossa volta nos surpreendem de forma inabitual, passamos a sentir maior necessidade de escrever as nossas memórias.
Os primeiros sinais dessa necessidade, são por vezes momentos em que nos invade uma inexplicável tristeza – tristeza que ao princípio confundimos com frio; confundimos com uma fina agonia; confundimos com uma atrofia da garganta quando queremos falar… – aquele pontapé nos rins que atira connosco, às vezes, para a lama da solidão. Mas nem sempre assim acontece…

Estrada Nacional em direcção ao Sul (os primeiros quilómetros).
Passando Setúbal, mais umas dezenas de quilómetros e: eis que chegamos (itinerário já conhecido e quase cumprido automaticamente há mais de dúzia e meia de Outonos…)
… Tenho pressa de chegar sem que por isso me apresse… Imprecisamente vou somando os metros e os quilómetros de asfalto que vejo a ficarem pelo caminho… – a perdê-los de vista sempre que o meu olhar se prende por segundos no espelho retrovisor… (não tenho desta vez a responsabilidade do volante, e posso entregar-me livre e ociosamente à contemplação de tudo… – ou de quase tudo) …
…E o meu olhar corre também pelos hectares e hectares de planície… e vem-me aos soluços, a cada metro e a cada quilómetro, uma vontade de me apear e ficar por aqui e ali debaixo de uma oliveira, ou debaixo de um sobreiro… ou, alternadamente: umas vezes debaixo de uma oliveira e outras debaixo de um sobreiro… E, logo a seguir a esta vontade, vem-me uma outra vontade: a vontade de mergulhar a ponta dos dedos no pêlo compacto das ovelhas em rebanho que, pelas vastas planícies, vão passando o tempo pastando … E, ainda neste embalar-me, vem-me a vontade de ficar sentado de ombros encostados à cal das fachadas de taipa das casinhas térreas, isoladas e perdidas no meio dos montes… – vontade de ficar ali – por um momento – entre o branco e o azul, a sentir crescer em mim o desejo de acarinhar tudo o que tenho vindo, com saudades e ao longo de anos, a conservar no calor dos interstícios do meu espírito…
… Cuidados para que esse reduto (restos) não se dissolva entre os véus do esquecimento… E também o desejo de me apaziguar para que em mim se dilua um insólito susto … E esse apaziguar-me conta com a ajuda do meu olhar sobe as coisas que me acompanham nesta calma urgente…

… Mas às vezes já não cumprimento as oliveiras e os sobreiros daquela maneira que me sossegava na certeza de que me ouviam… Não sei se uns e outros (oliveiras e sobreiros) hoje em dia esmorecem ao notarem em mim algumas diferenças… (é verdade que vamos mudando…).
Tenho a certeza de que as oliveiras e os sobreiros aproximar-se-iam fisicamente de mim se o pudessem fazer… (é verdade que creio que se aproximariam de mim…) e lá viriam elas e eles, soltos e com o seu ar graciosamente tosco (tão naturais…) e autónomos: raiz-ante-raiz… reduzindo-se cada vez mais a distância entre mim e elas e eles (oliveiras e sobreiros…) e eu sentado à sombra, expectante… E, já à minha beira, auscultar-me-iam com aquela sua ternura e simplicidade:
–“Que tens?... Que se passa contigo hoje?... Porque estás ai tão sozinho e imóvel?...”

De novo o meu olhar a percorrer hectares e hectares de planície…
Já mais a Sul… e no lazer da manhã de hoje (mais um dia, e: um domingo).

Vejo famílias… E crianças trepam de joelhos para as cadeiras de zinco das esplanadas da vila… – cadeiras pintadas de um verde escuro.
(Grândola).
Tomamos aí, numa dessas esplanadas, o habitual café da manhã. Empurro o gosto do café até que se plasme na minha alma com a ajuda de um cigarro acesso entre os dedos que me arrefecem... (está frio).
Há crianças e há pombos… e há o azul… e há a cor da paz entre os meus olhos e a copa das árvores… e estas (as árvores) a não se mexerem com medo que elas próprias perturbem tudo isto… ou seja: medo de mutilarem esta paz. Mas as árvores são pacíficas, e a sorte é que haverá sempre paz em algum e qualquer lugar do mundo enquanto houver crianças a treparem de joelhos para as cadeiras de zinco das esplanadas das vilas, das aldeias e das cidades… estejam essas cadeiras de zinco pintadas de verde escuro ou de outra qualquer cor. E, ao mesmo tempo que isto, mais pombos e mais azul… e as copas das árvores sem fazerem sequer um gesto… (na mesma silenciosas e irrepreensíveis).

… À minha frente o meu espelho … o meu desdobramento; a duplicação de mim; a minha cara-metade de há duas dúzias de anos (a minha mulher) … e é boa esta eternidade.
… E além mim; além ela… (além nós) – pelo caminho – o Além-Tejo; o Além-Sado; o Além-Arrábida…
Cada alongar do olhar sobre o azul é um titânico passo além mim: além de Lisboa; além do Tejo; além da Arrábida; além do Sado…
Os passos mais seguros são os que são dados sobre o céu… – mais seguros que os que são dados sobre as pedras, sobre os areais, sobres os musgos, sobre os húmus, ou sobre as ervas rasteiras dos campos… (é esta a minha experiência, e a minha palavra…).
…E quanto mais céu, tanto melhor – não importa onde se esteja: que haja azul; que haja céu… (o céu cura todas as cegueiras)…

(A Sul)… E a nostalgia em que me diluo neste tempo, ora presente, ora anacrónico
Olho as árvores deste pomar: ei-las… (elas reconhecem-me… – pois já somamos uns tantos e bons anos de relação em confiança…), e até me parece que elas se agacham para que eu lhes chegue aos ramos mais altos… – poem-se a jeito à semelhante dos cachorros quando esperam receber sobre o dorso o afago da mão de um humano que deles se aproxima e debruça.
Mas as árvores não são tão expressivas assim a revelarem os seus desejos e a agradecerem os afectos… Não pulam para nós como os cães, nem se roçam às canelas e às barrigas das nossas pernas como o fazem os felinos de estimação...
Toco nas árvores do pomar para lhes colher os frutos… Mas não vejo o rosto das árvores… (As árvores não têm cara… por isso não têm olhos… As árvores, neste particular, são distintas dos animais e dos humanos… Assim sendo, não podemos ver as árvores chorando de comoção e de saudades… mas sei que elas choram…, e quase juro que as ouço dizerem-me baixinho: “volta… não te esqueças de que estamos aqui… Não te esqueças que existimos…” – isto as árvores falando-me ao ouvido, e agachando-se para que eu lhes chegue aos ramos mais altos.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 
M. J. Gama Duarte

18 de Dezembro de 2011





M. Gama Duarte

As árvores que se agacham para que eu lhes chegue aos ramos mais altos

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015















Foto (autoria): M. Gama Duarte
Lugar: Reguengos de Monsaraz
“Carta”


…   
“Ao fundo do corredor nocturno que se estreitava, de um lado uma janela através da qual se solenizavam os seus perfis… do outro, uma janela através da qual se observava a Lua – uma Lua deslumbrada… e que pendia nua, fresca, madura, tímida e eterna…”.
Com estas palavras iniciaria uma carta (talvez uma carta). Depois não sei… não sei a quem imaginaria enviá-la a alguém… Pois tudo era imaginação.
Mas só se ali me retivesse esperando a serenidade da noite… – (pois a noite trás consigo segredos novos e múltiplos mistérios, os quais se revelam no caminho a que ela (a noite) nos obriga a percorrer entre a novidade, o que julgamos saber, e as expectativas das quais não desistimos…
E se aqui me retivesse, pois, com o tempo, revelar-se-iam (ou não) segredos novos e múltiplos mistérios. Mas entre esses (segredos e múltiplos mistérios) apenas alguns dos já confidenciados pelos poetas aos ouvidos do "oculto".  
E se assim fosse (se aqui me retivesse), continuaria a minha redacção:
“Confiante, avancei na noite em direcção à janela iluminada, ou em direcção a uma terceira janela, que talvez existisse. Talvez me tivesse aproximado da tal terceira janela, que afinal existia, e esperei que dessem pela minha presença.
(Eu olhava-os…)
Por fim olharam-me também, e esperei que me convidassem… E convidaram-me:
Anda... chega-te aqui a nós… Tiveste sorte: apareceste ainda a tempo de nos acompanhares na sétima rodada deste “licor de artemísia”.
Timidamente fui-me aproximando.
Brindámos... e foi-me permitido que, tranquilamente, prolongasse o prazer de sentir no céu da minha boca a mistura do hálito ao licor de “artemísia” com o odor às emoções que ainda se libertavam dos mais intensos versos escritos por aqueles poetas".  


M. Gama Duarte

1998






O Iceberg

(… e a luz que trás o silêncio)



– … Sim!... é um café, por favor – (confirmou).
– Normal ou curto, caro senhor? – Indagou o funcionário (este desconhecia o nome do cliente, e por isso – e também por um dever de respeito – tratou-o por caro senhor)…
… E se para o cliente for importante, o café que lhe servirem será um café personalizado (ao seu gosto e à sua vontade).
E de quatro hipóteses possíveis o cliente escolherá uma: ou chávena cheia, ou meia chávena, ou chávena a três quartos… ou mesmo só o princípio… Ou antes pelo contrário: sem o princípio
 E já está: O café… – o eflúvio sacramental na festiva inauguração de mais um dia igual, ou de um dia diferente dos outros dias. E não sendo o cliente o mais importante de tudo, talvez o café o seja...  - seja  o mais importante

O cliente vai desfrutando do aroma, do paladar, e de um certo silêncio trazido pela luz… – um espectáculo protagonizado por essa luz a oferecer-se num Outono que, com um admirável jeito, se disfarça de Primavera…

De resto: os pensamentos… as sensações… Ou brisas que provocam o primeiro movimento do iceberg performativo que assume o papel de jangada de fuga que leva o pensador sentimental em cruzada flutuante para um horizonte próximo... E cativo de uma sisma de confiança em planos protectores muito pouco ortodoxos, mas algo transcendentes.  Conforma-se o navegador/personagem... E confinado também ele se encontra à lógica de uma legítima estratégia de sobrevivência.

E no avanço e recuo das horas, o cliente (e personagem) mede o tempo pelo bocejo das gaivotas…
… E olha ao alto... – Um olhar que arrasta as nuvens e adivinha as marés…
O cenário é então azul (um tão azul)… o azul total – (o palco celeste).  

Enquanto bebe o café ele “pergunta as horas” a ninguém (nem a si próprio)... – pergunta essa que fica a sobrevoar a redoma do seu silêncio… e espera, sem presas, a resposta das gaivotas.


  
M. Gama Duarte

29-10-2010     

   


      

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015



Pintura
Sem título
Materiais: Aguarela, pastel, carvão, tinta da china

Suporte: papel





O imanente e o inesquecível 
(Crónica)


    
Naquela tarde Lúcio, em pensamento, recordou aqueles tempos:

Bem me lembro… era sempre por esta altura do ano (no princípio de Dezembro) que, mais dia menos dia, à conversa com o meu amigo Gonçalo ele me contava a sua ida, dias atrás, ao mercado da vila… ou dizia-me que em breve por lá passaria e de lá viria com o cabazinho do costume atestado… E tudo o que trazia se destinava já aos festejos de Natal partilhados em casa e em família…”.

Nesses tempos que Lúcio recordava, Gonçalo ainda vivia para os lados da Ericeira, mas frequentemente se deslocava a Lisboa.
Quando em conversa vinha à baila a tal corrida ao mercado da vila – o que já era tradição –, mais uma vez ficava reforçada a certeza de que o amigo Gonçalo se mantinha um rapaz organizado e precavido, abastecendo-se a tempo de tudo o necessário, e convenientemente. Diferente de outros que, sem emenda e repetindo o mesmo descuido dos anos passados, guardam tudo para “a última hora”, e que, por assim ser seu costume, se metem em embaraços…

Lúcio tinha ainda consigo um livro que o seu amigo lhe emprestara no início do ano transacto – isto após o Natal, e precisamente durante um jantar que o amigo Gonçalo oferecera aos seus mais íntimos e chegados: familiares e amigos do peito.
No dia a seguir a essa noite, ainda de madrugada, Gonçalo viajaria rumo a Salamanca. Tinha já as malas aviadas, e planos bem definidos em mente que pretendia concretizar num período que iria pouco além de um ano.

Quanto ao livro emprestado pelo amigo – uma magnífica e obra de Eduardo Lourenço –, Lúcio já o tinha lido e relido – o que lhe valeu um dilatar de horizontes, e uma oportunidade de se debruçar, detalhadamente, sobre certos aspectos da pintura até então quase invisíveis a seus olhos.

– “E agora quando te devolvo esta relíquia, oh Gonçalo?… Não sei se terei oportunidade de ir a Salamanca no próximo ano…” – Foram estas as palavras de Lúcio, preocupado, ao pegar no livro (naquela obra prima) que Gonçalo lhe estendia a título de empréstimo. E Gonçalo, com a habitual ironia e gentileza, comentou:  

– “Fazes bem se fores a Salamanca… Mas recuso-me a imaginar que lá apareças expressamente para me devolveres o livro… Que apareças (isso sim!) com o objectivo de me visitares e conheceres melhor a cidade…”.

A primeira vez Lúcio visitou Gonçalo em Salamanca foi no mês de Abril do primeiro ano de permanência do amigo naquela cidade. E três meses antes do regresso de Gonçalo a Portugal, Lúcio volta a Salamanca para o visitar segunda vez.
Porém, a meio do projecto que levara Gonçalo a permanecer durante quase dois anos na cidade de Salamanca, surge uma oferta de aluguer de casa na cidade de Guarda, que Gonçalo acha irrecusável.
Gonçalo mudar a sua residência em Portugal para aquela cidade mais a Norte.
As notícias sobre si e o seu trabalho em Espanha, passaram, principalmente, a saber-se no círculo de amigos que deixara em Portugal por intermédio da sua mulher Josefa.  
Josefa vinha frequentemente a Lisboa para estar com familiares e amigos. E meses volvidos sobre a partida de Gonçalo para Espanha, Lúcio passou a perguntar de vez em quando a Josefa:

– “Então o Gonçalo quando regressa?... não se saturou ainda de estar longe?” – pergunta a que Josefa respondia da seguinte maneira:

– “Não é tão longe assim, Lúcio… Mas ele está prestes a dar por cumpridos os seus compromissos… O projecto é bom, o trabalho corre bem… e não tem havido contratempos... E lembro-me de que o Gonçalo me disse que lhe escreveste e lhe contaste os encontros que tens tido com o Lauro Telmo…”  

Lúcio confirmou o envio dessa carta a Gonçalo de que lhe falava Josefa:

 – “É verdade… vi o Lauro uma vez na Primavera passada e outra já no Verão sem que pudesse falar-lhe. Só da terceira vez que o vi podemos falar (um acaso)… – um acaso agradável depois de tantos anos… Tínhamos perdido o contacto um do outro… Estive com ele uma quarta vez, e estes encontros têm sido a oportunidade de revivermos aqueles bons tempos… aquela camaradagem: as tertúlias que fazia-mos na adega do “ti Antero”… E esses encontros (eu e o Lauro), servirão para aliviarmos nostalgias”.   

Pois Lúcio, na carta que escrevera a Gonçalo, havia-lhe contado:

– “Pois caro Gonçalo, da primeira vez que vi Lauro Telmo, não houve possibilidades de nos aproximarmos... Eu viajava de eléctrico em Lisboa na carreira 28, e ao passar na Baixa Chiado, ali ao Camões, avistei-o ao longe a atravessar a Rua Garrett em direcção ao café “A Brasileira”. Isto à noite, e no início de Junho… Estava um tempo esplêndido para usufruir da animação exterior… Saí duas paragens a seguir porque o propósito que me levava aquela zona da cidade (o Bairro Alto), era assistir com a minha mulher, a mais uma palestra na Galeria Matos Ferreira que fica mesmo ali ao princípio da Rua Luz Soriano, nas bandas do Calhariz.
      E no primeiro fim-de-semana de Julho desse mesmo ano (2007), revelava-me o destino que em si mesmo estava escrito que mais uma vez (a segunda vez) não era o momento de um reencontro face a face com o nosso amigo Telmo. Vimo-lo sem que ele nos tivesse visto. E estava-mos relativamente perto dele. Mas a deslizante onda de multidão, curiosa e entusiasmada, ao sabor da qual éramos levados, travava uma constante luta contra o nosso desejado reencontro…
O caso ocorreu desta vez em Tomar durante a tradicional e popular Festa dos Tabuleiros que naquela cidade se realiza de quatro em quatro anos.  
E veio a ser este ano (2008), numa tarde de Sábado no CCB, a terceira vezes que vimos Lauro Telmo desde que tu, amigo Gonçalo, partiste para Salamanca cheio de expectativas e fé… E nenhumas dúvidas de que lá fluiria toda a inspiração necessária ao avanço do teu projecto cinematográfico.
Nesse dia em que vimos Lauro, era fim-de-semana o decorria no CCB o anual Festival de Música, que desde há alguns anos tem vindo a privilegiar a cidade de Lisboa com a presença de importantes nomes e importantes obras…
Tinha-mos então, eu e a minha mulher, acabado de assistir a um recital de piano e canto, e, já no exterior do edifício, descíamos a escadaria de pedra que termina no átrio amplo que comunica com a rua. Dali mesmo, da escadaria, e antes de pisarmos o último degrau, observávamos um apreciável adjunto de pessoas que formava uma espessa cintura à volta de cerca de uma dúzia de pitorescos personagens trajados a preceito. Cada um deles envergando seu instrumento musical que primorosamente tocavam.
Telmo misturava-se naquela pequena e animada multidão. De entre a assistência, alguém (uns poucos) – presumivelmente os mais desinibidos e foliões – já haviam saltado para perto dos músicos e, gordos de genica, dançavam. Iam conquistando espaço para mais livremente darem expressão aos seus movimentos – os quais se impregnavam daqueles sons que brotavam dos bombos, tambores, pandeiretas, violinos, flautas, pífaros, gaitas de foles… e sei lá que mais...

          Avancei rompendo a cintura humana que delirante sorria, batia palmas e baloiçava a cabeça ao compasso da música… Toquei no ombro de Telmo e falei-lhe efusivamente. Arranquei-lhe assim um escancarado sorriso ao encarar-me depois de se virar. E soltou logo de imediato um sonoro “Oh pá!!!... tás porreiro”. Abraçamo-nos de forma espontânea… solta. Não destoando de forma alguma os nossos modos no meio da animação que reinava, e do clima geral de um excepcional entusiasmo.
Guardámos as recordações e as novidades para o momento seguinte – momento esse logo combinado para a noite desse mesmo dia.
Jantámos juntos por ali perto… num restaurante antigo nas traseiras da Rua de Belém, que tem uma magnífica vista para o jardim e o Tejo.

– Sabes que vi a Dulce?... Lembraste da Dulce…(?!) – a Dulce Filipa” –Surpreendeu-me Telmo.
       Todos, os do nosso tempo (dos tempos das tertúlias) conheceram a Dulce. Vagamente eu me lembrava dela… Mas sabia que havia sido sólida a amizade entre a Dulce e o Telmo. Dulce até veio a ser madrinha de baptismo do primeiro filho de Telmo. Mas de pouco me lembrava do princípio e do evoluir da amizade entre os dois. Mas senti que Telmo fazia questão… tinha sincera vontade de falar dos tais velhos tempos.
Eu a minha mulher e o Telmo, passámos quase todo o jantar em conversa animada. Falando de tudo o que foram as experiências comuns e do rumo que cada um dos que fizeram parte daquele grupo coeso, tomou na vida. E falámos também dos novos tempos: Flávio abraçou a docência; Carlos é actor… faz frequentes viagens ao estrangeiro e participa em eventos cuja motivação é o intercâmbio de experiências e conhecimentos na área das artes teatrais; Marília seguiu agronomia e fixou-se no Ribatejo numa herdade que lhe deixaram os avós, e aí se dedica a um projecto de produção e comercialização de produtos biológicos; Bárbara Reis, interessada em antropologia, após a formatura nem um ano se segurou por cá… e hoje mantêm um lugar de relevo na UNESCO; Leonor escreve regularmente num jornal diário do Norte… faz traduções e é autora de dois romances de razoável sucesso; Leonardo sempre se interessou por velharias, e continua louco por carros. E então alugou uma oficina e dedica-se a recuperar carros antigos; Anselmo herdou a pequena tipografia do avô em Coimbra… dedicou-se aos livros, é alfarrabista, e é editor; o Arnaldo, fã da culinária, fez percurso nessa especialidade e já conhecem metade das cozinhas de Portugal; Anselmo terminou o conservatório… dá aulas de música e é proprietário de um restaurante em Évora, com condições que permitem a realização de espectáculos e a apresentação de edições de autor de jovens valores na área das letras; Dulce singra na pintura”.
Dulce havia oferecido a Telmo um convite para a inauguração da sua próxima exposição, que por acaso era no Sábado da semana seguinte… Telmo propôs-nos que fossemos com ele.
       Mas foi para Telmo um momento particularmente alto durante o jantar quando de novo veio à conversa o recente reencontro que teve com Dulce, e exteriorizou:
       – É verdade, … imagina bem vocês!... – isto passados uns doze anos...
Tinha-mos perdido completamente o rasto um do outro (por culpa minha … e sempre me doeu o facto de ter sido por culpa minha…). Mas também sempre acreditei que um dia o reencontro aconteceria… – seria meio acreditar e meia esperança. Mas cumprimentámo-nos com se nunca tivesse existido entre nós aquele interregno dos tais aproximadamente doze anos… quase foi como se o nosso anterior encontro tivesse acontecido apenas há meses…
          … Eu e a Dulce conhecemo-nos quando ambos estudávamos restauro na Fundação Ricardo Espírito Santo, aqui em Lisboa. Lembro-me da primeira vez que lhe falei – foi para lhe pedir um x-acto emprestado. Frequentávamos então o mesmo curso e éramos colegas de turma. Ela morava no Bairro da Mouraria, e praticamente desde que soubemos que morávamos perto um do outro, após as aulas, passámos a fazer juntos, e a pé, o caminho de regresso às respectivas casas. Foi o princípio de uma simpatia que evoluiu rapidamente para uma amizade sólida. Pouco tempo depois comecei a frequentar a sua casa. Era uma casa nada comum comparada com as casas tradicionais a que eu estava habituado… – era uma casa que reunia muita gente; havia quase sempre visitas; era um ambiente onde facilmente se proporcionava conhecer uma nova cara. A Dulce e o filho (o André), que tinha cinco anos e meio de idade, viviam em casa do Vasco e da Aurora (pais da Dulce). Vivia também na mesma casa o Frederico – o irmão de Dulce… este mais novo que Dulce.       
         … A amizade com Dulce foi para mim uma ponte para novas amizades… e Juntei a essas minhas novas amizades, antigas amizades – estas últimas, por sinal, boas mas muito poucas… conseguidas em momentos distintos da minha infância, adolescência e início da juventude…
        – O nosso reencontro merece um brinde amigo Telmo – considerei.
         – E bebamos também à reafirmação da nossa amizade de quase vinte anos – reforçou Telmo.
         E Telmo continuou:
        “– Então juntamo-nos no Sábado na exposição da nossa amiga Dulce?... Tenho um convite, como sabeis… posso levar amigos. Ela vai lembrar-se de ti e da tua mulher (nossa amiga também).
A galeria é em Évora… ou melhor: as telas encontram-se no espaço das exposições na Fundação Eugénio de Almeida. Ah!... e outra coisa que não cheguei a dizer-vos: A Dulce associou-se há tempos com o Orlando, e entendem-se lindamente no negócio do tal Restaurante que ele abriu em Évora (o tal restaurante de que há pouco falámos). Podemos combinar sair daqui juntos, bem cedinho, no próprio dia... ainda a tempo de almoçarmos com a Dulce. P’ra isso eu telefono-lhe…
        
          Telmo olhava-nos bem disposto e atento. E percebeu pela expressão dos nossos rostos que aprovávamos, sem reservas ou hesitação, o seu plano. E reagiu com redobrada boa disposição:
          – Óptimo. Assim sendo, falaremos ainda a meio da semana que vem… Certo?...”
  
Josefa continuava atenta a reprodução oral, quase perfeita, da carta que Lúcio havia escrito e enviado a Gonçalo. E Lúcio continuou:
  
          “E terminei assim:
Caro Gonçalo. Não poderia esquecer-me de te dizer que também falámos de ti… porque também relativamente a ti, o Telmo perdeu o contacto.
         Mas ficou a saber que estás em Salamanca, e manifestou interesse em conhecer as tuas produções no âmbito desse universo fascinante e mágico que é a Sétima Arte.     
          
        
     
Um abraço,
Lúcio"
                                                                             

                                                                         

M. J. Gama Duarte



Obs. Narrativa de ficção inspirada em vivências reais, e dedicada à minha família, aos amigos, e a todos aqueles com quem tem sido possível uma convivência em clima de camaradagem, fraternidade e respeito.










  
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