M. Gama Duarte |
Alentejo
… E que haja azul… Que haja céu…
(o céu cura todas as cegueiras)…
… e as árvores que se agacham para que lhes
chegue aos ramos mais altos
Quando chega o momento em que
verificamos que as coisas à nossa volta nos surpreendem de forma inabitual, passamos
a sentir maior necessidade de escrever as nossas memórias.
Os primeiros sinais dessa necessidade,
são por vezes momentos em que nos invade uma inexplicável tristeza – tristeza que
ao princípio confundimos com frio; confundimos com uma fina agonia; confundimos
com uma atrofia da garganta quando queremos falar… – aquele pontapé nos rins
que atira connosco, às vezes, para a lama da solidão. Mas nem sempre assim
acontece…
…
Estrada
Nacional em direcção ao Sul (os primeiros quilómetros).
Passando
Setúbal, mais umas dezenas de quilómetros e: eis que chegamos (itinerário já
conhecido e quase cumprido automaticamente há mais de dúzia e meia de Outonos…)
… Tenho pressa de chegar sem que por
isso me apresse… Imprecisamente vou somando os metros e os quilómetros
de asfalto que vejo a ficarem pelo caminho… – a perdê-los de vista sempre que o
meu olhar se prende por segundos no espelho retrovisor… (não tenho desta vez a
responsabilidade do volante, e posso entregar-me livre e ociosamente à contemplação
de tudo… – ou de quase tudo) …
…E
o meu olhar corre também pelos hectares e hectares de planície… e vem-me aos
soluços, a cada metro e a cada quilómetro, uma vontade de me apear e ficar por
aqui e ali debaixo de uma oliveira, ou debaixo de um sobreiro… ou,
alternadamente: umas vezes debaixo de uma oliveira e outras debaixo de um
sobreiro… E, logo a seguir a esta vontade, vem-me uma outra vontade: a vontade de
mergulhar a ponta dos dedos no pêlo compacto das ovelhas em rebanho que, pelas
vastas planícies, vão passando o tempo pastando … E, ainda neste embalar-me,
vem-me a vontade de ficar sentado de ombros encostados à cal das fachadas de
taipa das casinhas térreas, isoladas e perdidas no meio dos montes… – vontade de
ficar ali – por um momento – entre o branco e o azul, a sentir crescer em mim o
desejo de acarinhar tudo o que tenho vindo, com saudades e ao longo de anos, a conservar
no calor dos interstícios do meu espírito…
… Cuidados
para que esse reduto (restos) não se dissolva
entre os véus do esquecimento… E também o desejo de me apaziguar para que em
mim se dilua um insólito susto … E
esse apaziguar-me conta com a ajuda do meu olhar sobe as coisas que me
acompanham nesta calma urgente…
… Mas
às vezes já não cumprimento as oliveiras e os sobreiros daquela maneira que me sossegava na certeza de que me ouviam… Não
sei se uns e outros (oliveiras e sobreiros) hoje em dia esmorecem ao notarem em
mim algumas diferenças… (é verdade que vamos mudando…).
Tenho
a certeza de que as oliveiras e os sobreiros aproximar-se-iam fisicamente de
mim se o pudessem fazer… (é verdade que creio
que se aproximariam de mim…) e lá viriam elas e eles, soltos e com o seu ar graciosamente
tosco (tão naturais…) e autónomos: raiz-ante-raiz… reduzindo-se cada vez
mais a distância entre mim e elas e eles (oliveiras e sobreiros…) e eu sentado
à sombra, expectante… E, já à minha beira, auscultar-me-iam com aquela sua ternura
e simplicidade:
–“Que
tens?... Que se passa contigo hoje?... Porque estás ai tão sozinho e imóvel?...”
…
De
novo o meu olhar a percorrer hectares e hectares de planície…
Já
mais a Sul… e no lazer da manhã de hoje (mais um dia, e: um domingo).
Vejo
famílias… E crianças trepam de joelhos para as cadeiras de zinco das esplanadas
da vila… – cadeiras pintadas de um verde escuro.
(Grândola).
Tomamos
aí, numa dessas esplanadas, o habitual café da manhã. Empurro o gosto do café até
que se plasme na minha alma com a ajuda de um cigarro acesso entre os dedos que
me arrefecem... (está frio).
Há
crianças e há pombos… e há o azul… e há a cor da paz entre os meus olhos e a
copa das árvores… e estas (as árvores) a não se mexerem com medo que elas
próprias perturbem tudo isto… ou seja: medo de mutilarem esta paz. Mas as
árvores são pacíficas, e a sorte é que haverá sempre paz em algum e qualquer
lugar do mundo enquanto houver crianças a treparem de joelhos para as cadeiras
de zinco das esplanadas das vilas, das aldeias e das cidades… estejam essas
cadeiras de zinco pintadas de verde escuro ou de outra qualquer cor. E, ao
mesmo tempo que isto, mais pombos e mais azul… e as copas das árvores sem fazerem
sequer um gesto… (na mesma silenciosas
e irrepreensíveis).
…
À minha frente o meu espelho … o meu desdobramento; a
duplicação de mim; a minha cara-metade de há duas dúzias de anos (a minha
mulher) … e é boa esta eternidade.
… E
além mim; além ela… (além nós) – pelo caminho
– o Além-Tejo; o Além-Sado; o Além-Arrábida…
Cada
alongar do olhar sobre o azul é um titânico passo além mim: além de Lisboa;
além do Tejo; além da Arrábida; além do Sado…
Os passos mais seguros são os que são
dados sobre o céu… – mais seguros que os que são dados sobre as pedras, sobre
os areais, sobres os musgos, sobre os húmus, ou sobre as ervas rasteiras dos
campos… (é esta a minha
experiência, e a minha palavra…).
…E
quanto mais céu, tanto melhor – não importa onde se esteja: que haja azul; que haja céu… (o céu cura
todas as cegueiras)…
…
(A
Sul)… E a nostalgia em que me diluo neste
tempo, ora presente, ora anacrónico…
…
Olho
as árvores deste pomar: ei-las… (elas reconhecem-me… – pois já somamos uns
tantos e bons anos de relação em confiança…), e até me parece que elas se
agacham para que eu lhes chegue aos ramos mais altos… – poem-se a jeito à semelhante
dos cachorros quando esperam receber sobre o dorso o afago da mão de um humano que
deles se aproxima e debruça.
Mas
as árvores não são tão expressivas assim a revelarem os seus desejos e a
agradecerem os afectos… Não pulam para nós como os cães, nem se roçam às
canelas e às barrigas das nossas pernas como o fazem os felinos de estimação...
…
Toco
nas árvores do pomar para lhes colher os frutos… Mas não vejo o rosto das árvores…
(As árvores não têm cara… por isso não têm olhos… As árvores, neste particular,
são distintas dos animais e dos humanos… Assim sendo, não podemos ver as
árvores chorando de comoção e de saudades… mas sei que elas choram…, e quase
juro que as ouço dizerem-me baixinho: “volta…
não te esqueças de que estamos aqui… Não te esqueças que existimos…” – isto
as árvores falando-me ao ouvido, e agachando-se para que eu lhes chegue aos
ramos mais altos.
M. J. Gama Duarte
18
de Dezembro de 2011
M. Gama Duarte |
As árvores que se
agacham para que eu lhes chegue aos ramos mais altos
Sem comentários:
Enviar um comentário