Foto (autoria): M. Gama Duarte Lugar: Reguengos de Monsaraz |
“Carta”
…
“Ao fundo do corredor nocturno que se estreitava, de um lado uma
janela através da qual se solenizavam os seus perfis… do outro, uma janela
através da qual se observava a Lua – uma Lua deslumbrada… e que pendia nua, fresca,
madura, tímida e eterna…”.
Com estas palavras iniciaria
uma carta (talvez uma carta). Depois não sei… não sei a quem imaginaria
enviá-la a alguém… Pois tudo era imaginação.
Mas só se ali me retivesse esperando a serenidade da
noite… – (pois a noite trás consigo segredos novos e múltiplos mistérios, os quais se revelam no caminho a que ela
(a noite) nos obriga a percorrer entre a novidade, o que julgamos saber, e as expectativas
das quais não desistimos…
E se aqui me retivesse, pois,
com o tempo, revelar-se-iam (ou não) segredos novos e múltiplos mistérios. Mas entre esses (segredos e múltiplos mistérios)
apenas alguns dos já confidenciados pelos poetas aos ouvidos do "oculto".
E se assim fosse (se aqui
me retivesse), continuaria a minha redacção:
“Confiante, avancei na
noite em direcção à janela iluminada, ou em direcção a uma terceira janela, que
talvez existisse. Talvez me tivesse aproximado da tal terceira janela, que afinal
existia, e esperei que dessem pela minha presença.
(Eu olhava-os…)
Por fim olharam-me também,
e esperei que me convidassem… E convidaram-me:
– Anda... chega-te aqui
a nós… Tiveste sorte: apareceste ainda a tempo de nos acompanhares na sétima rodada deste “licor de
artemísia”.
… Timidamente
fui-me aproximando.
Brindámos... e foi-me
permitido que, tranquilamente, prolongasse o prazer de sentir no céu da minha
boca a mistura do hálito ao licor de “artemísia”
com o odor às emoções que ainda se libertavam dos mais intensos versos escritos por
aqueles poetas".
M. Gama Duarte
1998
“O
Iceberg”
(… e a luz que trás o silêncio)
– … Sim!... é um café, por favor – (confirmou).
– Normal ou curto, caro senhor?
– Indagou o funcionário (este desconhecia o nome do cliente, e por isso – e também por um dever de respeito – tratou-o por caro
senhor)…
… E se para o cliente for importante, o café que lhe servirem será um café personalizado (ao seu gosto e à sua
vontade).
E de quatro hipóteses possíveis o cliente escolherá uma: ou chávena
cheia, ou meia chávena, ou chávena a três quartos… ou mesmo só o princípio… Ou antes pelo contrário:
sem o princípio…
… E já está: O café… – o eflúvio sacramental na festiva inauguração
de mais um dia igual, ou de um dia diferente dos outros dias. E não sendo o cliente o mais importante de tudo, talvez o café o seja... - seja o mais importante…
O cliente vai desfrutando do aroma, do paladar, e de um certo silêncio trazido pela luz… – um
espectáculo protagonizado por essa luz a oferecer-se num Outono que, com um admirável
jeito, se disfarça de Primavera…
De resto: os pensamentos… as sensações… Ou brisas que provocam o
primeiro movimento do iceberg performativo
que assume o papel de jangada de fuga que leva o
pensador sentimental em cruzada flutuante para um horizonte próximo... E cativo de uma sisma de confiança em planos protectores muito pouco ortodoxos, mas algo transcendentes. Conforma-se o navegador/personagem... E confinado também ele se encontra à lógica de uma legítima estratégia
de sobrevivência.
E no avanço e recuo das
horas, o cliente (e personagem) mede
o tempo pelo bocejo das gaivotas…
… E olha ao alto... – Um
olhar que arrasta as nuvens e adivinha as marés…
O cenário é então azul (um
tão azul)… o azul total – (o palco celeste).
Enquanto bebe o café ele “pergunta as horas” a ninguém (nem a si próprio)...
– pergunta essa que fica a sobrevoar a redoma do seu silêncio… e espera, sem presas,
a resposta das gaivotas.
M. Gama Duarte
29-10-2010
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