As curtas linhas
que hoje julguei serem possíveis
Por um modesto capricho;
por uma natural necessidade de experienciar os contrários; por uma lógica de
vida que passa pela aceitação de um convite em que nele esteja implícita a
rejeição do prazer total, e a sugestão de um prazer partilhado (sentir em cada
coisa apenas uma parte do prazer), há aqueles momentos em que acredito que a
minha vontade é apenas a de escrever umas curtas linhas… Linhas tão curtas como
beijos fugazes que tocam os rostos como circulares gotículas de água nas
alturas em que se anunciam os breves chuviscos…
Bebo neste
momento um café curto, e tenho ao lado da chávena um copo com água que me
serviram meio cheio, mas que talvez não chegue a beber.
Aos poucos vou
sorvendo aos minúsculos goles esta líquida, aromática, escura e escaldante substância.
É a cafeína que,
neste ritual absorvo, vai ajudar a manter-me acordado o resto do dia.
(Parece-me que
assim: bebendo o meu café aos minúsculos goles, o sinto mais saboroso… mais
encorpado, e a espalhar-se mais delicada e eficazmente por todo o tecido
capilar interno da minha boca).
Vou
intercalando com os minúsculos goles – que cada vez são mais minúsculos, mais
pastosos e tudo o mais que as minhas sensações neles encontram – as palavras que
vão ganhando corpo na minha mente, e que, não sei porque carga de razão (ou com
que sentido), essas palavras descem por mim fazendo o caminho mais curto até
chegarem à ponta aguçada do objecto que os habituais três dedos da minha mão
direita apertam. E lá vou escrevendo.
(Talvez isto seja
uma carta… – outra carta – se eu de tal me quiser convencer).
…
M. Gama Duarte Motivo: Lisboa (Casas de Alcântara) |
Mas entretanto vai-se
fazendo tarde… e já não são para hoje as curtas linhas que julguei serem possíveis…
E, neste
fragmento de tempo que resta, lentamente levanto a cabeça… Observo o céu (um
céu geométrico e espartilhado: assente em artificiais horizontes delimitados por
aço e betão… ou apenas delimitados por pedra, argamassa e telha… É assim nas pequenas
e grandes cidades, e vilas).
Uma forasteira
aragem irrompe praceta dentro. Parece assediar-me.
Contorna-me discretamente o corpo. Ao de leve toca-me na camisa e esgueira-se logo,
estouvada e invisível, sem marcar terreno e sem deixar rasto...
… Atento, olho o
pulso procurando as horas … E já não há tempo para as curtas linhas
que hoje
julguei serem possíveis…
Motivo: Lisboa (Em casa dos pais nos anos 80) |
Resta apenas
tempo para as últimas partículas de cafeína já frias, que provavelmente ainda
encontrarei, se com elas contar e as procurar na concavidade afunilada da chávena de
loiça que repousa dois palmos abaixo do meu queixo.
M. Gama Duarte
Sem comentários:
Enviar um comentário