Rostos
Leandro passou uma vez mais os olhos pelo
jornal que há anos recebe pelo correio, e do qual todos lá em casa se tornaram
leitores.
O JornaL encontrava-se sobre o tampo da mesa
da sala onde na noite anterior o pusera
e deixara ficar para o dia seguinte.
Hoje o formato do JornaL aproxima-se do formato
das revistas de procura comum e que normalmente enchem os expositores de
livrarias, de papelarias e de quiosques de todo o país… Porém este jornal –
como bom jornal que é e sempre foi - é de uma importância inquestionável – bem
se distingue das demais publicações periódicas de vasto e maciço consumo… Pois,
com todo o mérito e dignidade, ele continua a ocupar, com distinta qualidade,
um espaço de referência no panorama cultural português.
De novo, atento, Leandro deixou que o seu
olhar se prendesse nas imagens da capa do dito jornal, que continuava como o
havia deixado sobre o tampo da mesa da sala.
Com honras de 1.ª página (em plano de
destaque), e por inteiro, a figura de um cineasta português de relevo que
recentemente havia falecido.
A figura do artista, a toda a altura entre
a linha de rodapé e a linha do cabeçalho da página do JornaL, ali estava… E
Leandro a vê-lo… – a ler-lhe um sorriso na expressão generosa e simpática que se
oferecia.
Este famoso cineasta viveu até aos seus setenta
e seis anos – (uma idade em que muitos de nós – homens ou mulheres –, de quando
em vez já recorre a um nítido esforço para suportar o peso das coisas e o peso
do próprio corpo… e até para suportar o ligeiro peso de uma criança de
tenra idade que tenha erguido para no colo a acarinhar.
E acresce a estas relativas dificuldades
quotidianas, o esforço, e a luta, para se manter a verticalidade da matéria corporal
que se possuí.
E a verticalidade de espírito (?)… a custo vamos mantendo-a com um outro modo de
esforço, e luta… – esforço e luta até ao último
dia desta caminhada terrena.
Também com honras de 1.ª página, no canto
inferior esquerdo da capa do JornaL, um grande compositor português (um outro
génio… e ainda jovem... Mas que precocemente partiu desta vida).
Dois artistas. Parentes entre si em
dignidade e autenticidade... – tanto quanto essas apaixonantes vertentes artísticas, a que cada um
se dedicava, os ligava (o cinema, a música e a fotografia). E a obra que ambos
deixaram foi de superior qualidade e para sempre perdurará.
Que me perdoem-me a ousadia, se competência
eu não tiver para falar de vidas e obras tão sublimes…
Mas, observando aqueles dois rostos, a
certa altura nos meus olhos já duas lágrimas de comoção e respeito procuravam
leito por onde se escaparem…
¿ E em qual dos rostos o meu espírito teria
encontrado inspiração para as duas
lágrimas prestes a brotarem à luz?... – Em ambos os rostos (é a resposta).
No primeiro dos dois rostos aquele leve
sorriso – talvez imediato. No caso do segundo rosto, parecia-me que o fotógrafo
não havia esperado pelo sorriso… Talvez o fotógrafo tenha adivinhado que o
sorriso iria tardar… Ou então, por minha conta e risco, tudo neste pressuposto
é uma irrealidade ou uma imprecisão – um equívoco que me conduziu a uma conclusão
fundamentada em razões diferentes das puras e verdadeiras razões: um engano dos
meus olhos, ou a presunção de que a imagem que ficou do artista se deveu à impaciência do
fotógrafo... (que me perdoe o fotógrafo).
Mas qualquer que fosse a expressão que
radiasse daqueles dois rostos, no presente essa expressão (de um tempo passado) já não pode ter uma
correspondência materialmente viva… Pois no presente (hoje) é já inexistente a
possibilidade física de um sorriso espontâneo e radiante naqueles genuínos rostos...
Porém um sorriso, e sorrisos, que em muitos momentos (nesses tempos passados) foram uma realidade (mais fáceis
umas vezes, menos fáceis outras vezes… mas sempre uma fulgorosa possibilidade).
Mas o que importa é que, sempre que do rosto destes
dois génios floria um sorriso, esse sorriso era extraordinariamente humano e
sincero.
Talvez o espírito das coisas seja a memória
delas mesmas – memória sempre viva… e que fica.
Todos temos um (e nosso) cavalo de batalha,
que nem sempre acerta o ritmo do seu galope com o ritmo das nossas jornadas.
Montamos o nosso cavalo de batalha enquanto
temos agilidade e equilíbrio… e enquanto aguentamos a seu galope.
Um dia, cansados, apeamo-nos dele.
Deixamo-nos ficar uns tempos ao lado do nosso cavalo
num companheirismo e amizade eterna… mas consentimos-lhe depois a liberdade
(“damos-lhe” esse direito)… E outros homens, ou mulheres, aproveitando a nossa
inspiração ou com uma renovada inspiração e força, subirão para o selim que foi nosso.
A arte é um imenso abraço à humanidade.
A beleza para a qual os artistas nos
despertam fica em cada um de nós eterna.
A partir de certa altura vemos nos idosos o
que nunca vimos antes. Vemos que se parecem cada vez mais com alguém que
estimamos mas que já partiu. Há uma luta titânica que os idosos aceitam e levam
até ao fim enquanto não lhes faltam de todo as forças e a lucidez…. É um esforço
heróico que fazem ao enfrentarem aquela permanente e poderosíssima força
gravítica.
Não obstante o esforço a que se obrigam,
conseguem, em muitos casos, manter a verticalidade vertebral enquanto a sua carne
visivelmente já cede.
(A gravidade é aquela força implacável que
nos puxa para a terra).
Avós, pais, tios – pessoas que estimamos e com as quais nos habituámos a lidar anos e anos…
… Mas a partir de certa altura damos connosco
a reter nelas o olhar… Mas olhando-as de outro modo e com outra atenção… – como
que a mesma atenção que damos ao horizonte – à linha do mar ao fim do dia –…
certos de que o Sol não se demorará eternamente, e não se manterá para sempre
preso ao dia e aos nossos olhos… E o último sinal de vida que dele ficará (do
Sol), se o imaginarmos com atributos humanos, será um gesto, uma expressão, um
qualquer movimento… uma palavra. Não queremos que o Sol parta distante de nós e
de costas para nós.
Separam-me da presença viva do meu pai, quase
trinta anos.
Lembro-me da sua estatura, feições,
passividade. Do que dele me recordo melhor é do que ele de melhor tinha… o que
era quase tudo.
Penso às vezes: Por onde andarão as sua
histórias?... (histórias que ninguém escreveu… – não se encontram escritas).
De resto, ele nunca se especializou em discursos…
… E algumas vezes me pareceu que,
propositadamente, ignorou as suas pessoais razões de descontentamento…
M. Gama
Duarte
16 de Maio
de 2012
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