Desenho Título: casa mágica Material: lápis de cor e tinta da china Suporte: papel |
Desenho sem título Material: tinha da china Suporte: papel |
As
estrelas não me repreendem…
Nem
um movimento. Nem um ruído... Quase nem uma sombra.
Quase
tudo Céu… O Sol… – (e) só.
Agora
a terra bebe toda a humidade que escorre das folhagens…
… E a noite foi aquela presença nos quartos… – o que se percebe pelo sentir na pele
a sua leve nomenclatura de cetim.
As janelas abertas e a Lua a vir
deitar-se connosco (ficou aos nossos pés como um felino manso).
Adormecer é como desperdiçar a sensação
de eternidade do momento.
Todas as estrelas já no seu lugar no
firmamento (não se empurram umas às outras…).
….
Antes, subi à açoteia (uma espécie de
terraço suspenso… e até podia chamar-lhe um pedaço de nuvem em forma de
rectângulo liso e cor de terracota). Sentia ainda um calor intenso debaixo dos meus pés... E sentia desejo de experimentar esse calor em todos os poros da minha
pele… Deitei-me abandonando o corpo por inteiro, e desenhando com ele uma cruz.
Reconheci aquele lugar… Recordava-me: a sensação
era mesma… sempre a mesma sensação naquele lugar… (ajuda nessa percepção as leis
dos equinócios preservada ainda na natureza e em teoria nos compêndios de
ciência…).
Agosto (Verão de 2011).
Porém castigam-me de dia as temperaturas
abrasantes: o ar escaldante toca-me e arranha-me como garras de lume, e
esfola-me o peito por dentro.
Creio-me ali (e assim) mais perto do Céu…
É como se entra-se por ele a dentro, ou como se ele me engolisse… e ao crer
nisso sorrio em clima de intimidade comigo próprio, que é a única forma
tranquila de o fazer – (sorrir)… – pois por sorrir em tais circunstâncias não
me vão repreender as estrelas, nem a Lua me vai franzir o sobrolho em sinal de reprovação…
Nem me vão abafar o sorriso as vozes das criaturas humildes que habitam o silencioso
mistério da noite…
… O Sol despontara à uma dúzia de quartos
de hora… E recordo-me como se fosse hoje (– eu então a pensar):
– “Manhã …
E aqui gostosamente rendido desde as
unhas dos pés mal aparadas (estou de férias…) até à ponta dos cabelos que ainda
conservo… passando esse elam pelo
coração, pelas mãos… – (uma das mãos segurando o cigarro; a outra agarrando a
asa da chávena, que agora apenas contem uma porção residual de café, mas que,
bebido, oferece ainda o intenso e familiar sabor – aquela fragrância que de
forma doce me espicaça o cérebro).
E o corpo aos ângulos – adaptado à
cadeira que por acaso é em plástico, assim como a mesa… E uma e outra peça
(mesa e cadeira) exibindo o reclamo à Sical.
Há uma linha imaginária, nem verde nem
azul, que me guia o olhar ao longe…
… uma linha, nem verde nem azul, que se atreve
numa fuga delirante para mais longe
ainda… leva-me consigo, e já não sei onde estou: se aqui sentado de cigarro
entre os dedos de uma das mãos (a direita… ainda tenho a noção), e a asa da
chávena entre o indicador e o polegar da outra mão (esta última logicamente a mão
esquerda).
E de novo a dúvida: já não sei onde estou
sentado… não sei se nesta cadeira à mesa, ou se estou sentado numa daquelas
nuvens brancas, sem que os meus pés toquem a linha imaginária, nem verde nem
azul…
(– agora já não uma linha mas sim uma
auréola – reparando melhor).
Mas estou certamente entre uma coisa e
outra (a nuvem e a cadeira em que me sento a esta mesa) …
Vou subindo e descendo montado nas
vértebras da minha fantasia acompanhando a imaginária linha (há novamente linha
e sinto-me como um equilibrista de circo).”
...
… Tinha-me levantado há pouco.
O sono finalmente posto em dia; os galos com
a sua sessão de canto coral cumprida, ou tendo-a interrompido (desistido por
cansaço) devido a exageros típicos de galo; o Sol já a virar maduro mas fixo no
azul de “prata”… – (o ouro sobre azul das
manhãs virgens, tranquilas e sem véu…) –, e o silêncio de um vazio cheio –
cheio de mim… cheio dos aromas a verde e a azul que entram pelas janelas
abertas… cheio do brilho da linha imaginária que afinal é de todas as cores.
Enfim, um vazio cheio de mim, e dos outros que nos quartos, de porta ainda fechada,
descansam; um vazio cheio dos restantes da casa que saíram cedo chamados a tarefas
e compromissos que não os dispensam.
Acordara bem desposto… Sentia-me à
vontade.
Com um braço aproximei mais de mim a minha
mulher, e assim ficámos mais um pouco.
Os rapazes ainda dormiam (ainda não os
tínhamos ouvido no corredor). Levantámo-nos (talvez já um pouco tarde…) para
um passeio ainda antes do almoço, e seria já debaixo da madureza tórrida e
macia do Sol do Sul…
E lá iríamos campo e estrada fora. Eu de
boné mal equilibrado ao centro da cabeça, nos meus excessivos cuidados com os
ultra violetas… e com os meus óculos de sol de lentes cor
de tintura, pendurados no nariz e nas orelhas – óculos que uso, por regra,
apenas para me esconder do mundo (mas de um
outro mundo, não deste aqui – porque deste mundo aqui não me escondo nem me
queixo porque é um mundo suficientemente sincero e natural… – é aquela simplicidade na base da qual seriamente a
linha imaginária de todas as cores brinda com os meus sentidos).
…
Gosto de me sentir bem… gosto de me
sentir à vontade.
Entre as nuvens e eu ainda a mesa. Sobre
ela, e à minha frente, o bloco de notas onde escrevo.
Num ângulo de visão por esventrar ainda, jovens
pinheiros mansos de um verde sólido… copas redondas como berloques gigantes,
cobrem cabeços ressequidos. Talvez duas, talvez três, talvez quatro centenas de
pinheiros mansos… íntimos como siameses (profunda inspiração do destino ...) –
talvez as suas vidas e destinos estejam ligados a uma mesma raiz comum.
(Enternece-me o convívio das árvores… O
convívio das árvores é como um soro de vertigem pura e sacralizada…
… Convívios?... rambóias?... relações de vizinhança?... cavaqueiras?… – Com as árvores sim!...Vale a
pena.
Loucura?... Talvez…
Talvez, passado um certo tempo, a loucura
seja o que se espera no indivíduo lúcido que justifica as suas teimosias e
irredutibilidades defendendo a ideia: “Deve-se
ver as coisas como elas são!...”)… E porque não (?).
…
… E por todo o lado era o silêncio. Para
mim era o silêncio… ficavam no fundo das gavetas
todas as cartas de recomendação, certificados de competência e credenciais
que respeitavam outros valores que não fossem os valores da simplicidade e do silêncio.
E que outras coisas serão melhor que a simplicidade e o silêncio?...
Um pássaro ao alcance da minha enfraquecida visão voava linearmente a
velocidade constante, transcendendo tudo o que não soubesse e que a mim não
fazia falta saber (nem a ele fazia falta saber). E enquanto isto, uma
abelha de tamanho invulgar, que quase me assustou, poisou (abordou-me). Eu não
sabia de onde vinha tal criatura, nem onde poisara antes. Aquietou-se perto da
minha chávena. Não se aproximou decerto atida à cafeína e com apetite a ela… (as
abelhas não tem noção alguma dos prejuízos e dos benefícios da cafeína). Deslocou-se
ligeiramente e pôs-se a chupar no vidrado à volta do estampado do pires, qualquer
coisa que me eu não enxergava (não distingui a olho nu o que era). A seguir a
criatura ficou imóvel, como que, tendo-se consolado, pretendesse fazer uma
digestão em tranquilidade. Ou então, quem sabe, talvez lhe interessasse experimentar
uma conversa comigo.
M. Gama Duarte
Sem comentários:
Enviar um comentário