Duplo Retracto
Imagem recolhida do livro RE COMEÇAR – Almada em Madrid,
com texto de Ernesto de
Sousa, e publicado pela
IMPRENSA NACIONAL – CASA DA MOEDA, sob a Colecção
arte e artistas
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… Porque não aqui para sempre?...
(crónica)
Ali era bom: riam-se;
entrelaçavam gestos de afecto; acenavam à chegada das faluas e das traineiras;
falavam de poesia e dos poetas; divagavam sobre o rumo dos paquetes e dos veleiros…
E questionavam-se:
– Será que na textura das asas das gaivotas também se lêem as linhas que
rezam o rumo dos destinos?
Gostavam daquela
esplanada de acesso complicado… mas que mesmo assim frequentavam.
(Nos dias que corriam, para
eles aquele retiro era já paradeiro certo… E, com o tempo, o conhecer aquele
lugar – do qual tiravam benefício todos os que se iam fazendo clientes
habituais –, passava a ser um privilégio.
“Varandim
Azul Mar – Café Cervejaria – vinhos e
petiscos”... – nome bem
visível no letreiro a sobressair junto ao umbral, e a puxar a atenção pelo
facto de se apresentar em letra de estilo
escavada em pinho velho e pintada de frescas tonalidades de rosa, amarelo, turquesa
e azul marinho.
… E de Frederico das naus?... que dizer do velho e amigo Frederico
das naus?...
– Um rosto familiar… e o
homem que, trinta anos atrás, numa soalheira manhã de Maio reabria ao público as
portas daquele acolhedor e centenário estabelecimento – honrando assim uma
herança que recebera de boas mãos e em boa altura… E bem-aventurada a Primavera
em que foi tomada essa definitiva decisão, porque permitiu que uma tradição
ancestral não tivesse que contar os seus últimos dias de existência.
…
– “Varandim Azul Mar… – o nosso
refúgio a céu aberto, e secreto... Aqui é bom!...” – repetidamente Orlando
e Fabíola comentavam entre si todas as vezes que ali voltavam, considerando já aquele
lugar o seu refúgio secreto… e a céu
aberto… E apenas seu, como se realmente por eles tivesse sido inventado… e como
se por ali apenas eles fossem vistos e achados.
…
Desde tempos remotos que
se ouve dizer que o mundo é pequeno. Mas
Orlando não sabia se em algum tempo da história tal constatação foi com toda a
certeza boa notícia (em algumas
épocas e circunstâncias provavelmente, ou de certeza, o foi. Mas noutras talvez
não… E casos bem complexos haverá em que surgem e perduram as dúvidas…)
…
Afirmação e
(ou) razão… – o eterno dilema. E de
uma à outra margem – da afirmação à razão (isto enquanto dura a controversa travessia) – a verdade bóia sem que, à partida, se antecipe
o destino ou o ponto onde encontrará porto.
Gladiam-se hipóteses no
âmbito das possíveis explicações… (analisam-se as causas e os efeitos). E sempre
os pólos inseparáveis. E, momento após momento – (e aqui e ali) – o içar do
estandarte que anuncia a incerteza relativamente ao triunfo e glória da
harmonia e do equilíbrio.
Mas afinal quem sabe se a
sabedoria pura-pura consiste no conhecimento que as aves possuem como
patente sua (?) – questionava Orlando.
… E Orlando avançava ainda
com aquela teoria – que era sua – um tanto
ou quanto delirante, irónica, excêntrica ou surrealista… mas sua:
“… Ora se
o mundo é pequeno, é porque o mundo diminuiu de massa, de forma e de peso… pelo
facto de ter vindo, pouco a pouco, a desgastar-se e a desfazer-se… ou seja: a finar-se”.
Mas Orlando, lá no fundo
de si, sempre preferiu um mundo grande… (“inimaginável… incomensurável”) – mundo
onde um homem (ou mulher) se perderia entre biliões de milhas, e entre biliões
de léguas… – um mundo tão grande, e de tal maneira surpreendente e impossível,
que a superfície terrestre desse mesmo
mundo ficaria tão perto da superfície da lua em sua órbita que, de um para o
outro astro, se medisse simplesmente o comprimento de um salto de gazela ou de um
passo de mulher… Pois um mundo assim – com tal grandeza –, seria um mundo de intermináveis
e fabulosas oportunidades… – até com espaço de reserva, ou de sobra, para
lugares à semelhança do “Varandim Azul
Mar”: lugar de laser desterrado… Desterrado mas tranquilo… E raro, e belo… e
só assim compreendido como lugar à escala, ou de proporções ao jeito de Orlando
e Fabíola.
…
A imagem do velho Frederico
das naus reaparecia recortada a contra
luz.
Atrás de si a entrada
estreita do bar bafejava uma dourada penumbra onde trémulos e coloridos reflexos
se plasmavam.
O sorriso no rosto de Frederico
ia puxando pelos seus passos lentos, que pareciam segui-lo… – como se todo ele:
sua materialidade visível e presença holística – acudisse aos leves e suaves sons
e aromas… e às cores reunidas num gigantesco punhado de crepúsculos.
Mas o sorriso e os
passos de Frederico das naus respondiam também à apelativa presença,
calma e doce, do ainda jovem casal.
Frederico das naus estimava aqueles seus clientes
de longa data. E lá andava o velho Frederico: os seus passos lentos; o seu sorriso
que traduzia a franca afabilidade contida no simbólico abraço de apreço pelos habituais
rituais dos seus enigmáticos (mas simpáticos) clientes. E, por consideração, de
modo especial ele os servia:
– “Aqui tendes, amigos… – a vosso gosto: as vossas taças… (ainda taças produzidas
em fino vidro das antigas, tradicionais e afamadas, vidreiras da Marinha Grande).
Especial atenção da minha parte para com vocês, por se tratar dos meus caros amigos…
E ainda quanto às taças, é o melhor tinto alentejano que cá tenho a enchê-las…
para que brindem e bebam com satisfação, e se sintam bem”.
…
– “Mais um Tchim-Tchim… (mais um…) À vida! … – à vida e a tudo o ela
contem que faça sentido” – propunha
Fabíola, ao mesmo tempo que os seus longos cabelos, de um castanho muito claro
– quase loiro –, pendiam para o seu ombro direito ao inclinar ligeiramente o
rosto. E, do mesmo lado, com os seus finos dedos, Fabíola tocava com delicadeza
a base da taça que ergueria ao mesmo tempo que Orlando ergueria a sua. Era um
sinal: um gesto continuado por outros gestos… – como que uma liturgia dando expressão
a algo que revelava uma vontade comum (coisa que eles muito gostavam: brindar
às coisas da vida que tinham um claro propósito. E gestos em que um e o outro,
e um perante o outro, se redescobriam, se reconheciam e entendiam… em que reafirmavam,
olhos nos olhos, um compromisso assente em sentimentos, e um vinculo canónico já
de muitos anos. E por assim dizer e ser: gestos que num único gesto se fundiam).
…
– “Aqui é bom…” – dizia Orlando… e dizia Fabíola… Diziam-no num quase tom ou num tom quase (tom em tudo quase igual àquele tom com que se pronunciava o silêncio
que ali podiam escutar). E Orlando continuou:
– “Fabíola… E se hoje não fossemos lá àquele outro sítio, e só lá fossemos
depois (mais tarde)?... Fiquemos antes assim perto deste mar e do crepúsculo
extraordinário que nos espera.
A
cidade é bela também, bem sei… – sabemos isso… E é a nossa cidade mãe… Lá
nascemos, e nasceram também os nossos descendentes… E também é belo o rio que a
cidade tem a “afagar-lhe os pés”: o Tejo… Mas apetece-me agora a paz que este
lugar aqui nos oferece, e apetece-me este momento… E até há alturas em que me parece
que só aqui – neste lugar – existe a possibilidade de ficarmos tranquilos... E
há dias em que quase não aparece nem vemos vivalma chegar próximo deste nosso
espaço…
Por
estas razões encontro sentido nestes nossos momentos.
Foi
aqui que fomos inventando este imenso mundo que nos recebe e nos acarinha. Repara
que aqui existe mais próximo dos nossos olhos, mais próximo dos nossos ouvidos…
mais próximo das glândulas que nos comunicam a essência deste aroma a iodo e
sal, um horizonte único (nosso). E é igualmente possível aqui um certo paraíso –
um paraíso onde se tornam musicais todos os ventos e brisas que dentro de nós
sopram...
…E
se ficasse-mos aqui para sempre, Fabíola?...
Fabíola esboçou um
sorriso afirmativo sem a mais ténue vacilação… – um sim que um leve aceno de cabeça agraciava… E esse acordo,
estabelecido num cenário de fantasia que muito bem dominavam, selavam-no
erguendo pela segunda vez, com solenidade, as suas taças de vinho.
– “Claro… Num outro dia (vamos lá à cidade num outro dia) – assentou
Fabíola fitando Orlando, e ao mesmo tempo consentindo que o mesmo ar sorridente
de há instantes regressasse ao seu rosto.
E, para surpresa de
Orlando, era agora Fabíola que, retendo o sorriso, colocava a mesma hipótese:
–
“E porque não, voltarmos depois aqui e aqui ficarmos para sempre?...”
M. Gama Duarte
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