Rosa Maria Duarte
– a poetisa, fadista e pintora,
a quem dedico esta crónica
As telas,
o sono dos sons
… e deambulações nocturnas
"Fotograma 1"
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“Fotograma” 2
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“Fotograma” 3
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“Fotograma” 4
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“Fotograma” 5
M. Gama Duarte / 2015 (Instalação)
Talvez entre paredes; talvez entre espelhos…
(entre paredes e espelhos) o silêncio signifique o profundo, mas atento, sono dos sons… – o silêncio/espaço onde os sons adormecem como que no leito de um suave velado… ou de um translúcido… ou mesmo
de um absoluto transparente.
Mas há sempre um som de vigília… Um finíssimo zumbido de sentinela num
ponto/centro interno do nosso ouvido… – um som que possivelmente em nós (no nosso
centro) já exista mesmo antes de nos ser dado corpo (mesmo antes de sermos O Ser que somos, isto é: antes de sermos gerados).
Esse silêncio também existe (ouvimo-lo se estivermos atentos) entre
o céu e a terra e entre o céu e o mar.
Submerso nele – nesse silêncio, que é por ventura o sono dos sons –
despertava a minha mente…
Noite.
Há poemas em que a palavra Noite
é o 1.º verso… Não sei se alguma vez escrevi um poema em que a primeira palavra
tenha sido Noite (não creio que alguma
vez tenha acontecido começar assim um poema).
E hoje: Noite (a palavra) aparece no meio desta minha reflexão com expressão escrita (e não é um poema o
que neste preciso momento escrevo) … e, no contexto em questão, é simplesmente a Noite... - a Noite deixando-se a si própria ser total… deixando-se ser ela própria… E eu nela deambulando entre paredes (não entre espelhos: entre paredes pela casa… e apenas pela casa).
Desliguei há pouco o portátil, porque dei por terminada a minha secção
da Noite de hoje.
De passagem pela sala/estúdio, mais uma vez a impressão de que os
objectos se calam ao eu entrar e me deixar ficar… (os objectos intimidam-se).
Mas porquê intimidarem-se se já lhes sou tão familiar (?)… E eles “são meus” (…
são “os meus”, e "os nossos”, objectos: os objectos da casa).
Mas serão meus (?)… serão os meus (os nossos) objectos (?)…
– Não!...
Eles são deles próprios… E a Noite é dela própria.
Mas afinal de que estariam conversando os objectos?... (não resisto
a uma única oportunidade de saber de que conversavam).
Por ora imagino que comentando, quiçá, a nova presença do dia (da Noite)…
Todavia algo já habitual (as novas presenças) naquele silêncio/espaço onde os
sons vão adormecendo… Um silêncio/espaço prenhe de surpresas, que a eles – (objectos)
– lhes vai tirando o sono, por gratificantes motivos, logo que, adormecidos, os
sons sosseguem.
Ficam as cores… as formas… E as fragrâncias que, inaladas que
sejam, dão a saber de que cor, de que traço e de que forma se libertaram.
Sobre o cavalete, plasmados na tela, são presentes agora as aves (pássaros!…) Haviam antes surgido
(em outras telas): a estrela com o Sol ao centro, as claves de Sol… o busto
daquele senhor de barbas com os olhos atraídos por um horizonte que dali ninguém
vê (só ele o enxerga) – o senhor que talvez seja o músico que toca as
guitarras que chegaram antes e estão algures por perto… Mas o senhor mais possui ar de poeta que de guitarrista.
– Cá para mim é o Herberto Helder – alvitrou o Júlio César Machado depois
de ter estado de confidências com o cavalo de estanho (como era do seu gosto),
e de ter passado uns segundos pelas brazas.
– Gosto daquele quadro ali com um quarteto de pinceis – revelaria o
pequeno buda de loiça. E a título de suposição acrescentaria:
– Aqueles quatro pinceis aparentam ser muito amigos… e se calhar até
são alentejanos e sabem cantar. E, caso saibam cantar, talvez se aproximem do
quinteto de pássaros e resolvam fazer um coro juntos.
E a respeito de todas estas aparições estariam por ventura a comentar os simpáticos objectos que habitam as prateleiras da estante – isto antes de me verem entrar... – aparições com as quais os simpáticos objectos se iam distraindo e maravilhando…
… E nisto imaginava-os, numa ânsia de espreitarem – em total precipitação
de curiosos –, a atropelarem-se e a debruçarem-se da estante. E entre eles uma voz preocupada: – E se um de nós tombasse e se despenha-se daqui?... Talvez, com sorte, embatesse e ficasse estatelado naquele
quadro cheio de folhas pintadas a cores frescas… as quais serão certamente
fofas… E sempre era mais confortável o quadro das folhas que o mosaico rijo e
frio.
E nisto o Gil, empertigado – crescendo por cima de um dos seus
colegas de prateleira, rematou:
- E até imagino (o quanto seria giro) eu num voo levando daqui ao
chão (absolutamente em queda livre).
E o gato de gesso:
- Seria giro para ti… que és de matéria leve... e não te quebras. Mas
nós não teríamos o mesmo destino se nos despenhasse-mos daqui: ficávamos dramática e irremediavelmente desfeitos
em milhentos fanicos…
E a zebra de porcelana, metendo-se na conversa, considerou:
– É claro que contigo seria diferente, Gil… Ao mesmo tempo que seria uma diversão para
nós: redobraria o interesse do espectáculo (gozaríamos de uma pança de riso) se a senhora que pinta os quadros, num
gesto redondo de braço, como se no ar pintasse um arco-íris, te atingisse
enquanto voavas. Não só ficarias atordoado como também mudarias
instantaneamente de cor.
A acreditar, haviam sido estas as últimas palavras pronunciadas
pelos objectos na parte final de uma troca de impressões entre eles… Mas que, porém, se
acautelaram remetendo-se ao mutismo logo que deram conta de eu entrar na sala/estúdio.
Não querendo intrometer-me no seu ambiente, conservei a minha postura discreta não dando aso ao mais ténue
sinal de suspeita de que por ali se passava algo singular (algo típico de um
mundo fabuloso e encantado).
Sem esperar descobrir algo de especial, com o olhar dei uma ligeira vassourada pelos mosaicos. Quem sabe se a minha presença ali, naquele preciso
instante, não me daria a oportunidade de consumar a minha boa acção do dia, acudindo
a uma voz que me suplicasse:
– Tu aí, amigo!.. Por favor: dá-me uma mãozinha porque eu não consigo levantar-me
sozinho (sou um simples boneco irrequieto que se deixou caiu da estante)… Agradeço-te que
me devolvas ao lugar a que pertenço.
Inspeccionei mais uma vez, num relance de olhar, o chão da
sala/estúdio prolongando o meu momento de fantasia que se alimentava da minha
imaginação...
Mas nada.
Regressei então à realidade, e sorri...
Fazia (isso sim) parte da realidade, a beleza das telas que ali abundavam.
Mas os personagens da presente fabulação, apesar de imóveis e sem
voz, não deixavam de possuir também a sua realidade… (a sua vida).
M. Gama Duarte
13-05-2015
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