Seixal - Lisboa:
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do Seixal
Lisboa vista
suspensa sobre Guitarras
E o Artista toca,
e a Artista canta,
uma Melodia Nupcial
entre Lisboa
e o Seixal
Ilustração:
M. Gama Duarte /2015
Técnica mista (desenho a rotring e colagem de recortes)
SEGREDOS
(Os segredos dos rios e os segredos dos corpos)
…
e assim acreditei: não era possível, senão assim, chegar mais longe... (ao Sul…)
…
E era, no momento, a melhor maneira de “fugir”…
(a minha maneira... a minha fuga) – "fugir" para o mais longe possível… – a “fuga”
que não me cansava…
Pensei: Apraz-me fugir assim… – pois… – não me impõe qualquer
esforço: é aquela fuga linear… serena… – como uma longa e perfeita respiração...
…
E era uma longa e perfeita
respiração que dispunha como
margens as imensas e repousantes paisagens deste “meu (e nosso) ” infinito Sul… E era sempre
assim…
…
E ao mesmo tempo que essas imensas e repousantes paisagens iam sendo as damas
de honor dos meus olhos nesse rumar
a Sul.
…
M. Gama Duarte / 1985 |
Cheguei
à sombra que procurava… e podia enfim respirar.
E
ali me deixei ficar encostado ao tronco de um jovem plátano que, segundo me
palpitou, ali existia há aproximadamente quatro anos.
E
ali ele continuava entre meia dúzia de outros plátanos da mesma geração.
…
Rose, sentada
do meu lado esquerdo, lia Augusto Cury.
À
minha direita a Nessy sossegava: ventre sobre a relva fresca e verdejante, e
focinhito esticado… E ali estava ela: esperta e atenta.
A
curiosidade canina de Nessy levava-a, de quando em vez, a fixar o olhar nos
pequenos bandos de gaivotas que ora poisavam sobre a massa negra, lodosa e
luzidia da ria, ora formavam voo e se afastavam. E ao lado dessa pungente
manifestação de vida em liberdade, um pequeno número de antigas embarcações ali
jaziam, porque ali haviam encontrado lugar para o sono perpétuo dos seus velhos
cascos e dos seus velhos mastros.
….
Rose continuava
do meu lado esquerdo.
Virei-me
lentamente na sua direcção torcendo ligeiramente a cintura, e contando com o
apoio do meu cotovelo esquerdo que sob o meu tronco se fixava na sombra.
Detive-me assim um breve instante. Sorri.
Rose captou
o meu sorriso antes de virar mais uma página do livro que lia, e antes de um
suspiro… E antes de, num gesto sereno, ajeitar atrás da orelha a madeixa de
cabelo que lhe descia sobre a sua face mais próxima de mim.
…
–
Tens que ler este livro – recomendou-me Rose … – isto quando
ela entendeu ser o momento de corresponder ao meu sorriso e de fazer uso das
suas palavras… E o seu sorriso foi aquele seu sorriso que acrescenta sempre algo mais ao valor simples das coisas e às
circunstâncias comuns...
–
Tenho muitos livros para ler… – observei eu num primeiro comentário ao que ela
me dizia. Mas logo de imediato reconheci o interesse do concelho que Rose me
dava:
–
É verdade que tenho sempre livros para ler… mas tu sempre me aconselhas os
melhores… É por isso que acredito que valha a pena ler também esse que me
recomendas...
O
livro que Rose lia,
e me aconselhava, era uma obra assinada por Augusto Cury… E uma vez mais
recordo o título: “ Pais Brilhantes, Professores Fascinantes”.
…
–
Ouve!... – pediu-me Rose.
Interessado,
dispus-me logo a dar toda a atenção ao que Rose se
propunha ler, para que eu ouvisse.
Procurei
então a pose que maior confortável me oferecia, para que atento
escutasse Rose.
Assim,
num movimento (e só num movimento) lento e discreto, desdobrei os joelhos… e
logo a seguir o resto do meu corpo cedeu.
Senti
desfazer-se assim, muito naturalmente, aquele ângulo preciso que permite que o
ser humano se sente de forma confortável e estável.
Esbateu-se
por fim, por completo, a possibilidade de eu abarcar com o meu olhar o quase
perfeito círculo azul que contornava a minha consciência
de mim e o meu prazer de ali
me encontrar naquele exacto momento.
Senti
os dedos entrelaçados das minhas mãos a sofrerem uma leve pressão entre a minha
cabeça e a verdura a que me abandonara confortavelmente. Sentia os meus dedos
tocados pela minha nuca, e por outro lado sentia a minha nuca tocada pelos meus
dedo… (é impressionante a sensibilidade de que são dotadas estas
extraordinárias extremidades do nosso corpo).
Estas
extraordinárias extremidades (os dedos) comparei-as um dia aos pequenos
afluentes dos rios... – (recordo essa minha reflexão)... e verbalmente
revelei-a num tom de voz que permitisse que Rose a meu lado me
ouvisse:
–
Sabes (?...), o Tejo é generoso… é nosso dever agradecer-lhe. Ele permite-nos o
desfrutar desta bela baía (a Baía do Seixal… – caso exemplar dos pequenos
segredos dos rios… Assim como existem os pequenos segredos do corpo… dos nossos
corpos”).
Em
pensamento, alonguei-me na minha reflexão enquanto no plano da minha existência
densa (concreta) eu mergulhava num breve silêncio. Pensava:
“Sim,
as pequenas baías, as pequenas lagoas, os pequenos afluentes, os pequenos
riachos … – tudo isso são pequenos segredos dos rios… Segredos dos seus
líquidos corpos… – (muitas vezes submersos e aí conservados… Escondidos). Líquidos corpos que correm e alagam
discretamente… Banhando os sítios mais recônditos e sombrios: em serras, em
bosques… Lugares ainda virgens… sítios ainda não desbravados pelos olhos e
pelas mãos humanas.
São
assim os rios à semelhança do nosso corpo (dos nossos corpos num certo sentido
colectivo… – (que o nosso corpo também tem os seus “segredos”).
–
“E em que são comparados os pequenos segredos dos rios aos pequenos segredos
dos nossos corpos?...” – questionei (e a mim próprio me questionei), de novo em
voz que permitisse a Rose ouvir-me.
-
"Acho que sei a comparação” – surpreendeu-me Rose.
Também
nesse dia – junto à Baía do Seixal – Rose estava
ao meu lado… E eu tinha-lhe dito, instantes antes, que podíamos agradecer ao
Tejo a sua generosidade (… Era a generosidade do Tejo que permitia que
desfrutasse-mos de toda a beleza daquela baía. E vinha de todo a propósito
falar a Rose da
reflexão em que eu mergulhara na sequência da “edílica” consideração que,
instantes atrás, eu havia feito a respeito do Tejo – O Tejo… O rio a “quem” o Seixal e Lisboa
confessam todos os seus segredos.
…
“Eu
sei… – Sei esses segredos em que pensas! … – Esses segredos do nosso corpo… dos
nossos corpos. Esses segredos que comparas aos segredos dos rios… Acreditas que
sei, companheiro?” – confrontava-me Rose …
E Rose sorriu
desviando de seguida o olhar... Provavelmente adivinhando no meu rosto um
sorriso semelhante ao seu a desenhar-se nos meus lábios… (pretendendo talvez
que esse meu sorriso também se transformasse num segredo).
…
Instantes
depois, Rose inclinou
levemente a cabeça para trás… e depois para o seu lado esquerdo.
Por
si próprios os seus longos cabelos desviaram-se ligeiramente deixando a
descoberto uma sedosa superfície de pele branca do pescoço, onde fez deslizar a
ponta dos dedos da sua mão direita.
…
Era
noite.
A
ténue claridade que chegava à orla daquela praia fluvial da Margem Sul vinha dos candeeiros que cedo se
acendem para iluminar a estrada marginal que aparentemente cria uma divisão
entre a vila e a praia. Também trémulos feixes de luz estendiam-se nas águas
espessas e escuras, parecendo amarras douradas a prenderem, uma à outra, e a
céu aberto, as vilas do Seixal e de Amora.
Os
meus olhos perdiam-se num estranho mas apelativo encontro com ocultas e belas
faces de uma particular realidade. E tudo atraía a si, com especial virtude,
aquela ínfima luz que assumia uma rara espécie de privilégio devotado a quem
havia fruído do feliz destino de ali chegar naquele dia ao raiar da noite.
O gesto gracioso
de Rose, tocando com os dedos o seu pescoço,
não me deixou dúvidas: ela sabia do que eu falava, e eu compreendera-lhe o
gesto...
E
se alguma dúvida em mim ainda existisse, essa dúvida não sobreviveria às
palavras de Rose:
“
– Acho que sei a comparação… Sei esses segredos em que pensas… Esses segredos
do nosso corpo… – dos nossos corpos” – palavras que ecoavam no plano mais
sensível da memória dos meus
ouvidos. Palavras cristalizadas numa doce certeza; palavras cativas ainda
no sorriso que perdurava na boca de quem as dissera.
Senti
um calor junto à minha face, e uma pressão que me empurrava as mãos. Sabia que
era Nessy á volta da minha cabeça, de cauda alçada e farejando, a procurar-me
os dedos.
Nessy
fazia-me acordar da viagem em que calcorreara os caminhos da minha memória… –
viagem que me levara ao areal da bela Baía do Seixal. Mas algo de mim ainda se
prendia a essa viagem… a essa peregrinação em espírito: “o regresso”... O
regresso à Baía… - Àquela noite:
“
– Comemos bem… Estava bom o peixe dos nossos pratos… E o vinho alentejano que
nos sugeriram, e serviram (colheita do ano de 2004), era excelente…” –
comentei eu…
E Rose:
–
“Vamos agora descer à areia… Vamos ver os barcos.
E
eu:
–
“Sim, vamos!... – vamos andando até onde a praia nos deixar ir”.
Tocar
a areia (a praia) era a ideia perfeita para o prolongar do meu momento
com Rose –
porquanto era um desfrutar do agrado de Rose.
E,
bem à sua maneira, logo Rose naturalmente
manifestou a sua vontade adiantando-se a passos afoitos… enquanto saltitando
num só pé ia descalçando o outro. E depois correndo comentou:
–
“Mais depressa falasses em praia, mais depressa me vias correr assim”.
M. Gama Duarte / 2012 Desenho a carvão sobre papel |
Aproximei-me.
Flecti o corpo e testemunhei a evidência: “aquela praia também tinha as suas
conchas”, como me dissera Rose.
Peguei em duas e vislumbrei, tanto quanto a luz envolvente me permitia, os
relevos, as texturas, os recortes, as tonalidades daquelas duas pequenas
conchas.
Olhei Rose,
e disse-lhe:
–
“Sabes, Rose (?)... isto são pequenas jóias
destas águas e destas areias … – jóias nas formas mais livres e naturais… Aqui
não há mão nem pensamento humano a decidir sobre estas formas.
O
Tejo é generoso… devemos agradecer-lhe. Ele permite-nos o desfrutar desta bela Baía…”
M. Gama Duarte / 2012 Desenho a carvão sobre papel |
Ambos
sabíamos aquela verdade dos rios – os seus segredos: lagos; ribeiros; riachos…
Os rios têm de facto os seus segredos como os nossos corpos têm os seus
segredos. Temos os nossos sinais particulares que expomos, ou guardamos
ocultos… Alguns existem em nós onde só nós sabemos… (secretamente eles lá
permanecem). Pertencem-nos como pequenas relíquias que nos fazem únicos.
Rose levantou-se
e avançou alguns metros ao longo da praia. Mantinha ainda graciosamente a mão
sobre o pescoço já coberto pelos cabelos. (Talvez ainda conservasse no rosto
vestígios do sorriso).
Rose transparecia
tranquilidade. Caminhava lentamente… imperturbável. Parecia ter sido tomada por
um desejo súbito de se recolher em intimidade com os segredos do seu corpo.
…
Nessy
regressava às minhas mãos. Confundi por momentos as suas lambidelas a
despertarem-me, com a sensação que me deliciara ao tocar com as minhas mãos
(com os meus dedos) as minúsculas ondas que vieram desfazer-se à praia da Baía
do Seixal, naquela noite… – a noite em que eu e Rose falámos
de segredos. Em que Rose, também com os
seus dedos, e fazendo-os deslizar na pele branca do seu pescoço, tocou aqueles sinais que bem conheço… que fazem parte
daqueles tais segredos do corpo... dos nossos corpos.
Nessy
afastou-se. Retomei a pose que me permitia de novo observar as poucas e simples
coisas… e o horizonte… (tudo). E se de tudo eu falasse, as palavras poderiam
esgotar-se numa demanda pela melhor expressão, pelo melhor estilo, pela mais
fabulosa e incomparável harmonia…
E Rose continuava
manuseando “Pais Brilhantes, Professores Fascinantes”… de Augusto Cury…
Eu
prestava por fim toda a atenção à leitura (ao que Rose lia)... Eu
não tinha a mínima noção se ela se havia apercebido do meu momentâneo
alheamento em relação às suas palavras (à sua leitura… ao que ela já me havia
lido). Por ventura, e pelo menos, o som da sua voz nunca teria estado ausente
em mim. Poderia até imagina-las (as suas palavras) pairando, rolando ou
navegando sobre o meu peito… ao longo de todo o meu corpo numa tentativa de
descobrirem nele os tais segredos que existem escondidos nos corpos, para lhes
falarem e os compararem aos segredos dos rios… – tudo segredos aos quais elas
(as palavras) se podem render numa fiel e eterna cumplicidade.
Rose terminara
a leitura. Fim de um capítulo que eu deveria ter ouvido por inteiro. E de novo
um sorriso estampado no seu rosto… – quase interrogativo.
E,
de resto, eu sabia que ela achava que não era necessário convencer-me do que
quer que fosse…
Mas
ao seu sorriso, quase interrogativo, eu não podia responder “que sim… – que
tinha ouvido tudo o que me lera”. Quando muito dir-lhe-ia que a frase com que
terminara o capítulo, era excelente. Poderia dizer-lhe até, recordando-me dos
meus momentos de leitura nos dias soalheiros e frescos da Primavera de 2006,
que também se poderá considerar feliz o final de um outro emocionante livro de
Augusto Cury (uma outra obra sua), porque o final dessa outra história é uma
mensagem de esperança… A celebração da vida em esperança, num romance que
conta, tão simplesmente como brilhantemente, a “Saga de Um Pensador”.
Podia dizer todas estas coisas a Rose,
mas eu também sabia que não era necessário tentar convencer Rose do que quer que fosse…
M. Gama Duarte
Setembro de 2007
Fotos:
Dunas, e praia,
da costa atlântica portuguesa
Desenhos (título):
Fadistas pescadores
das águas das tágides
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