M. Gama Duarte / 2015
Sou do Fado,
como, para
meu contentamento,
deslumbramento,
e dor,
um dia vim
a saber…
E hoje
sei
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Elaboração:
Técnica mista
(desenho a caneta de tinta da china,
pintura com ecolines e recortes colados)
Sou do
fado,
como, para meu contentamento,
encantamento, deslumbramento
e dor,
vim um dia a saber…
E hoje sei
Não canto.
Nunca cantei: nem fado, nem outros cantares… ou, se melhor for uma outra forma
de exprimir-me: nem fado nem outras canções.
Ou talvez O cante… quero
eu dizer: talvez cante O Fado numa certa forma de pensamento.
Mas se afinal canto O Fado numa certa forma de pensamento, não é, porém, a minha voz que aos meus ouvidos
soa… que é o mesmo que dizer: não me oiço a mim próprio mas sim a outro: um outro
de entre os muitos – homens e mulheres, deste e de outros tempos – que sabem (ou
souberam) cantar O Fado.
Mas sou do Fado,
mesmo não O sabendo cartar… – sou do Fado como, para meu contentamento, encantamento,
deslumbramento e dor, um dia vim a saber… E hoje sei.
… Não é que tenha
nascido em berço de fado, ou que tenha
crescido embalado pelas suas vozes, sons, reflexos, cintilações… e sombras… E, segundo
o que me lembro, era eu já adolescente, ou mesmo adulto (aí pelos meus vinte e poucos anos), quando pela
primeira vez, levado por amigos, entrei numa casa onde O Fado era cantado… – algures
nas entranhas profundas do Bairro Alto.
Anos atrás eu tinha
lido a crónica com o nome “Casas de Sofrer” da autoria do escritor, já
falecido, José Gomes Ferreira – Uma das
histórias incluídas na sua obra “O Irreal Quotidiano” – obra cuja 1.ª edição foi
publicada no ano de 1971, em Lisboa, pela Portugália Editora. E a 2.ª edição em
1976 pelas Publicações D. Quixote.
Já lá vão muitos anos…
E nada quero ficar a dever à verdade… – quero dizer: não vou presunçosamente
afirmar que me recordo de todos os pormenores como se fosse ontem que tivesse
experienciado estas passadas vivências… Em verdade não me recordo de todos os
pormenores...– Nem dos pormenores da crónica
de José Gomes Ferreira, nem dos pormenores do meu primeiro contacto, de perto (embora
não com grande intimidade), com gente do Fado – isto é: da minha primeira
experiência do que é ouvir cantar O Fado no ambiente onde ele ganhou raízes (o
seu ambiente natural) e do que é estar entre o público que habitualmente procura O Fado e o ouve como deve ser ouvido, e sentido: em calor humano e em silêncio.
E remexendo na minha memória,
o que encontro que reste dessa quase mítica noite?
Talvez unicamente vagos
e esquivos registos de imagens… sons, sensações… sentimentos (uma velada
sequência de imagens à qual não arrisco dar uma ordem diferente daquela que tenho
para mim como a mais pura… ou mais genuína – porque a mais remota)… E o que mais
poderei dizer (?).
Recordo-me que, ao entrar
naquele espaço à média luz, tive a súbita e surpreendente sensação que cometia um
sacrilégio… (estaria eu a pisar, sem o saber, algum lugar sagrado?)... E esta
sensação que tive, não sei se teria origem no silêncio, na minha observação das
poses e do ar aparentemente circunspecto dos rostos, e no pequeno detalhe de haver
sempre um cigarro aceso entre dedos da mão de alguém, ou esquecido…
… E não iam muito longe os tempos onde eu, não
sabendo bem porquê, fui buscar aquela ideia do sagrado… – os tempos em que a
minha mãe, ora perto do fim da manhã ora pelo fim da tarde, saía de casa levando-me
consigo. E quando por aquela hora – rondando as sete, e quase noite – o motivo certo, ou mais provável,
eram as rezas inteiras de terço e as missas ouvidas até ao fim. Inicialmente na
Basílica da Estrela; mais tarde, após mudanças, na Igreja de Campolide. E da
memória de tudo isto, faz parte a penumbra que tudo envolvia, inclusive quem entrasse.
Penumbra que porém não era de todo negra: penetrava-a, pois, vinda dos vitrais lá no alto, aquela espécie de arco-íris multicolor e informe.
Mais reais (palpáveis)
eram os círios, aos quais – como coisa de facto real, e dependendo a luz que emitiam
de um gesto – de quando em vez o braço de alguém até eles se esticava. E tudo isto que comedidamente (em silêncio) eu observava, que me
recorde nunca alguma vez me fez verdadeiramente sofrer… Nem o contrário.
- O que afinal acontece
numa casa de Fados? – questionei-me. Mas tinha a certeza que aquela noite ia
dar-me a oportunidade de o saber.
Já lá vão muitos
anos… E nada quero ficar a dever à verdade, como atrás deixei escrito... –
porque na verdade não me recordo… – não me recordo de todos os pormenores como
se fosse o caso de ter sido ontem a minha primeira noite na companhia do Fado…
Mas hoje sei que sou
do Fado… vim a sabe-lo um dia, para
meu contentamento, encantamento, deslumbramento e dor… – É a dor, o
deslumbramento, o encantamento e o contentamento das suas histórias… o que há
de mais real no Fado. E O Fado nasce da realidade de um povo. Talvez todo o
povo português, e em particular o português alfacinha, devesse saber cantar O Fado,
mesmo que não soubesse nada mais cantar.
… E o artista sofre como também sofre aqueloutro que não sendo artista
ama na mesma a arte – pois em verdade já se é artista amando-se a arte.
Mas o sofrimento do artista é um sofrimento sentido pelo meio das
imensas e extasiantes alegrias que a arte proporciona.
Nunca cantei o Fado… e não o canto… Ou se o canto é em forma de
pensamento, e não é a minha voz que ouço… (não faria sentido ouvir-me porque não
tenho voz).
A minha mãe tinha alguma voz e cantava. Eu ouvi-a cantar pela casa
enquanto lidava. E era Fado o que ela cantava… – isto num tempo em que eu ainda
não sabia o que era Fado.
Ela cantava… cantava e eu nunca cheguei a saber se ela se preocupava com
o facto de a sua voz ser ou não boa … E eu hoje compreendo: se existem coisas
(cores e formas) que só os olhos da alma vêm, também existem sons que só os
ouvidos da alma ouvem. O Fado é humano (postura, poesia, sentimento e
vibração), mas também possui na sua natureza algo de transcendente… e não
duvido (há razões para acreditar), que Até Deus Gosta De Fado. José Gonçalez
tem razão quando o afirma no seu novo CD.
Hoje em dia quando em viagem sintonizo a Rádio Amália, reporto-me
frequentemente a esses tempos (recordo a voz da minha mãe: os refrões e os
versos completos de Fados… talvez também um ou outro Fado inteiro…). Não tenho
porém memória da primeira telefonia que os meus pais tiveram lá em casa.
Retenho simplesmente em lembrança resquícios sonoros associados a antigos
programas radiofónicos que enchiam a casa principalmente nas manhãs e nas
tardes dos fins de semana. Misturavam-se às vezes as vozes: as da casa e as da
rádio, sobressaindo, não raras vezes, a voz da minha mãe tentando acompanhar as
vozes da rádio.
E de quando em vez um verso em que pelo meio (lá vinha): “… O Fado é
sorte…”; “..O Fado é sina…”… O Fado é isto, e O Fado é aquilo. E eu ficava
pensativo imaginando quem seria aquele personagem, “O Fado”, que ia aparecendo
pelo meio das histórias que eram contadas nas canções, afirmando que O Fado
isto e O Fado aquilo… Quem seria afinal esse famoso e tão falado “senhor”(?).
Não cheguei a fazer essa pergunta nem à minha mãe, nem a ninguém.
Porém, se tivesse feito a tal pergunta: quem era afinal esse senhor
chamado Fado, não ficaria desde esse dia a saber o que hoje sei… – o que vim a
saber anos mais tarde sem que alguém mo tivesse explicado.
Há o saber teórico que, com mais ou menos termos ou expressões técnicas,
e mais ou menos sucintamente, qualquer especialista nos pode transmitir. Mas
por outro lado há aquela aprendizagem e a sabedoria adquiridas que só pelos
nossos próprios meios são conseguidas. E neste segundo caso, para chegarmos a
determinado conhecimento é preciso termos o coração uns passos á frente em
relação ao cérebro.
Há uns dois anos no Bairro Alto, e já noite alta, entro com a minha
mulher na “Tasca do Chico”. Já tinha sido apresentado o fadista que no momento
dava início à sua actuação (um veterano do Fado vadio, provavelmente já na casa
dos oitenta). A sua voz já nitidamente enfraquecida; A letra já mal se
libertando dos seus lábios… Mas aquele homem estava ali… admiravelmente de
corpo e de alma inteiros.
Que lhe faltasse a voz, que lhe faltassem as palavras… Porque a melodia,
o ritmo e os tons não os deixava nem deixaria para vozes alheias…. Aquele era o
seu momento, o seu tempo, o seu Fado… E ali estava com toda a solenidade e
dignidade... E isto é O Fado…
É assim com a gente do Fado… e assim, nobremente, O Fado se revela.
Meses atrás em Alfama eu à conversa com um jovem fadista (fadista e poeta)
de grande talento, que tempos antes na Mouraria tive o privilégio de conhecer,
de nome David Gonçalves, a determinada altura disse-lhe:
– “David, não sei se sabes que
sou Alfacinha de gema...”.
Ele olha-me (de facto não me lembrava se já lho tinha dito… e pareceu-me
todavia que reagira com surpresa). E ele pergunta-me:
– “E os teus pais são também alfacinhas?”
Respondi-lhe:
– “Os meus pais não (não eram)…”
E o David então:
– “Assim sendo, se os teus pais não nasceram em Lisboa, tu sim: alfacinha... mas não de gema”.
Um esclarecimento que não me fez feliz. Mas era a verdade.
Esmoreci, mas agradeci ao David o ter-me elucidado de uma questão que de todo era do meu interesse.
Recuperei daquela espécie de desgosto. Pois o mais importante era
continuar-me a sentir alfacinha de gema apesar de tecnicamente não ser alfacinha.
M. Gama Duarte
16-05-2015
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