G r a v a t a a m e r i c a n a
Sonhei hoje contigo, pai.
Já havia bastante tempo que não nos encontrava-mos nos meus
sonhos. Também nunca antes te tinha visto tão catita nestes nossos nocturnos
encontros… (não é que alguma vez te tenha visto mal vestido…)
Não fui de luxos, como sempre soubeste… (ainda hoje sou assim)
E para te teres apresentado
da maneira como me apareceste no sonho, é possível que tenhas ido remexer no
meu guarda-fatos e escolhido uma das minhas melhores camisas (a minha melhor
camisa: limpa, engomada, perfumada… e sem lhe faltar um único botão)…
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M. Gama Duarte /
2016
Instalação / Cenário
Título:
“Sonho a Cores”
(Plano 1)
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Enfim… – bem reparei
que te esmeraste… Pois na figura que apresentavas havia sinais de nada teres deixado
ao acaso, e, em resultado dessa tua preocupação, lá estava a boa impressão que
deixaste... E é um facto que me surpreendeste…
Na volta foste mesmo
ao meu guarda-fatos, não obstante eu não ter encontrado, no meio do todo aquele
crónico reboliço, quaisquer vestígios de outras mãos que não as minhas mãos
(mesmo apesar de todo aquele reboliço).
Reparei em ti… (olhei
com toda a atenção), e constatei que estavas deveras elegante… mesmo sem
gravata.
Não sei porque penso
nisto agora (…): quase tenho absoluta certeza de que tu em vida nunca
vestistes, ou calçaste, uma única peça do meu guarda-roupa… (talvez porque sempre
foste maior que eu…)
Mas se esta noite, especialmente
para o sonho, quebraste esse teu velho princípio, acho sinceramente que te
deves tranquilizar: não te apoquentes porque nada fizeste de errado…
…
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M. Gama Duarte /
2016
Instalação / Cenário
Título:
“Sonho a Cores”
(Plano 2)
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De quando em vez, de
há alguns anos a esta parte, faço frequentemente toalete com aqueles cintos com
fivela em latão que eram teus… (muita coisa tu deixaste…).
Uso esses teus
cintos para que as calças não me desçam demasiadamente abaixo do umbigo,
dando-me um ar desleixado… E assim, com um dos teus cintos, o cós mantem-se sobre
os quadris a uma altura razoável… e pronto: as calças ficam a assentarem-me
melhor… E mais:
Ás vezes coloco até uma
das tuas gravatas quando se dá o caso de “obrigatoriamente” ter que comparecer
em algum lugar onde se impõe a prática de alguma etiqueta – o que é uma seca
(as etiquetas são para mim uma seca)... mas lá me conformo com as pontuais obrigações
sociais, e escolho uma das mais bonitas gravatas de entre todas as que herdei de
ti (que bonitas, a bem dizer, todas o são)…
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M. Gama Duarte /
2016
Instalação / Cenário
Título:
“Sonho a Cores”
(Plano 3)
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E bem me recordo ainda
que me contavas que essas gravatas vinham da América – de um amigo que tu
tinhas na América…
Mas a verdade é que
nunca foi teu estilo usares regularmente gravata… E isso notava-se nas raras
vezes em que as vestias… E tão raras eram as ocasiões em que retocavas a tua
toalete com o colorido e a fantasia de uma gravata, que nunca chegaste verdadeiramente
a apurar o jeito... (levavas algum tempo a acertar no ponto exacto em que o nó
da respectiva deveria apresentar-se). Mas, como eras habilidoso, era uma
questão de tempo e paciência (eras também paciente) e o nó da gravata acabava
por aparecer e assentar no sítio exacto no colarinho da camisa.
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M. Gama Duarte /
2016
Instalação / Cenário
Título:
“Sonho a Cores”
(Plano 4)
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E a verdade era que
ficavas bem composto… Tal como te apresentaste no meu sonho… – estavas indiscutivelmente
elegante e discreto mesmo sem a gravata.
Também nunca antes,
em sonhos, tinhas surgido tão bem disposto…
Perguntei-te como estavas. Sorriste e, ao mesmo tempo que nos cumprimentava-mos, respondeste-me assim:
– “Agora estou bem!…”
Do sorriso pronto,
fácil mas sincero, passaste adiante até à gargalhada eufórica e emotiva, motivada,
provavelmente, pelo entusiasmo daquela oportunidade de comunicarmos...
De resto, apreciei também
o teres mantido o teu sentido de humor…
M. Gama Duarte
Na foto:
João Duarte
(extracto da crónica
que compus em 01 de Julho de 2012, e intitulei “Gravata Americana”. Crónica
cujo início, aqui transcrito, é inspirado num sonho que havia tido com o meu
pai na noite do dia anterior).