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MENSAGEM AOS VISITANTES DO BLOG

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terça-feira, 27 de janeiro de 2015





João Duarte e Maria do Rosário Duarte, numa das janelas de sua casa que davam para o quintal, em Lisboa, nos anos 80.





Beleza intemporal


Não era diferente a luz
porque menos leve não era a sombra
que lhes purificava os gestos…

Falavam da eternidade… 
eternidade-sentinela em chamas  
que arde
num eterno lavrar
de caminhos.

Não havia neles princípio…
(talvez um fim… (um dia)
… Pois seriam gestos sem registo no tempo,
e não os perturbava a memória…
nem a idade dos sonhos,
nem da idade dos desejos...
Não os perturbava a idade da alma…

Indiferentes ao leve sono da lua
e ao tamanho das estrelas,
confiavam na secreta virgindade,
e pureza,
dos errantes punhos de água
em nupciais encontros
com as singelas e imaculadas raízes
de açucena.

Não era diferente a luz
porque menos leve não era a sombra
que lhes purificava os gestos…
E eles subiam… Subiam:
degrau a degrau;
pé-ante-pé;
ternura-ante-ternura…
E,
já perto,
navegavam em  madrugadas
que se orvalhavam
a um terno
e ténue olhar.
   

 
M. Gama Duarte
1996
    



domingo, 25 de janeiro de 2015

Desenho
Título: casa mágica
Material: lápis de cor e tinta da china
Suporte: papel





Desenho sem título
Material: tinha da china
Suporte: papel



As estrelas não me repreendem…



Nem um movimento. Nem um ruído... Quase nem uma sombra.
Quase tudo Céu… O Sol… – (e) só.
Agora a terra bebe toda a humidade que escorre das folhagens…

… E a noite foi aquela presença nos quartos… – o que se percebe pelo sentir na pele a sua leve nomenclatura de cetim.
As janelas abertas e a Lua a vir deitar-se connosco (ficou aos nossos pés como um felino manso).
Adormecer é como desperdiçar a sensação de eternidade do momento.
Todas as estrelas já no seu lugar no firmamento (não se empurram umas às outras…).
….

Antes, subi à açoteia (uma espécie de terraço suspenso… e até podia chamar-lhe um pedaço de nuvem em forma de rectângulo liso e cor de terracota). Sentia ainda um calor intenso debaixo dos meus pés... E sentia desejo de experimentar esse calor em todos os poros da minha pele… Deitei-me abandonando o corpo por inteiro, e desenhando com ele uma cruz.         

Reconheci aquele lugar… Recordava-me: a sensação era mesma… sempre a mesma sensação naquele lugar… (ajuda nessa percepção as leis dos equinócios preservada ainda na natureza e em teoria nos compêndios de ciência…).
Agosto (Verão de 2011).
Porém castigam-me de dia as temperaturas abrasantes: o ar escaldante toca-me e arranha-me como garras de lume, e esfola-me o peito por dentro.
Creio-me ali (e assim) mais perto do Céu… É como se entra-se por ele a dentro, ou como se ele me engolisse… e ao crer nisso sorrio em clima de intimidade comigo próprio, que é a única forma tranquila de o fazer – (sorrir)… – pois por sorrir em tais circunstâncias não me vão repreender as estrelas, nem a Lua me vai franzir o sobrolho em sinal de reprovação… Nem me vão abafar o sorriso as vozes das criaturas humildes que habitam o silencioso mistério da noite…  
  


… O Sol despontara à uma dúzia de quartos de hora… E recordo-me como se fosse hoje (– eu então a pensar):
– “Manhã …
E aqui gostosamente rendido desde as unhas dos pés mal aparadas (estou de férias…) até à ponta dos cabelos que ainda conservo… passando esse elam pelo coração, pelas mãos… – (uma das mãos segurando o cigarro; a outra agarrando a asa da chávena, que agora apenas contem uma porção residual de café, mas que, bebido, oferece ainda o intenso e familiar sabor – aquela fragrância que de forma doce me espicaça o cérebro).
E o corpo aos ângulos – adaptado à cadeira que por acaso é em plástico, assim como a mesa… E uma e outra peça (mesa e cadeira) exibindo o reclamo à Sical.

Há uma linha imaginária, nem verde nem azul, que me guia o olhar ao longe…
… uma linha, nem verde nem azul, que se atreve  numa fuga delirante para mais longe ainda… leva-me consigo, e já não sei onde estou: se aqui sentado de cigarro entre os dedos de uma das mãos (a direita… ainda tenho a noção), e a asa da chávena entre o indicador e o polegar da outra mão (esta última logicamente a mão esquerda).
E de novo a dúvida: já não sei onde estou sentado… não sei se nesta cadeira à mesa, ou se estou sentado numa daquelas nuvens brancas, sem que os meus pés toquem a linha imaginária, nem verde nem azul…
(– agora já não uma linha mas sim uma auréola – reparando melhor).
Mas estou certamente entre uma coisa e outra (a nuvem e a cadeira em que me sento a esta mesa) …
Vou subindo e descendo montado nas vértebras da minha fantasia acompanhando a imaginária linha (há novamente linha e sinto-me como um equilibrista de circo).”

...
… Tinha-me levantado há pouco.
O sono finalmente posto em dia; os galos com a sua sessão de canto coral cumprida, ou tendo-a interrompido (desistido por cansaço) devido a exageros típicos de galo; o Sol já a virar maduro mas fixo no azul de “prata”… – (o ouro sobre azul das manhãs virgens, tranquilas e sem véu…) –, e o silêncio de um vazio cheio – cheio de mim… cheio dos aromas a verde e a azul que entram pelas janelas abertas… cheio do brilho da linha imaginária que afinal é de todas as cores. Enfim, um vazio cheio de mim, e dos outros que nos quartos, de porta ainda fechada, descansam; um vazio cheio dos restantes da casa que saíram cedo chamados a tarefas e compromissos que não os dispensam.

Acordara bem desposto… Sentia-me à vontade.
Com um braço aproximei mais de mim a minha mulher, e assim ficámos mais um pouco.
Os rapazes ainda dormiam (ainda não os tínhamos ouvido no corredor). Levantámo-nos  (talvez já um pouco tarde…) para um passeio ainda antes do almoço, e seria já debaixo da madureza tórrida e macia do Sol do Sul…
E lá iríamos campo e estrada fora. Eu de boné mal equilibrado ao centro da cabeça, nos meus excessivos cuidados com os ultra violetas… e com os meus óculos de sol de lentes cor de tintura, pendurados no nariz e nas orelhas – óculos que uso, por regra, apenas para me esconder do mundo  (mas de um outro mundo, não deste aqui – porque deste mundo aqui não me escondo nem me queixo porque é um mundo suficientemente sincero e natural… – é aquela  simplicidade na base da qual seriamente a linha imaginária de todas as cores brinda com os meus sentidos).


Gosto de me sentir bem… gosto de me sentir à vontade.
Entre as nuvens e eu ainda a mesa. Sobre ela, e à minha frente, o bloco de notas onde escrevo.
Num ângulo de visão por esventrar ainda, jovens pinheiros mansos de um verde sólido… copas redondas como berloques gigantes, cobrem cabeços ressequidos. Talvez duas, talvez três, talvez quatro centenas de pinheiros mansos… íntimos como siameses (profunda inspiração do destino ...) – talvez as suas vidas e destinos estejam ligados a uma mesma raiz comum.
(Enternece-me o convívio das árvores… O convívio das árvores é como um soro de vertigem pura e sacralizada…
… Convívios?...  rambóias?...  relações de vizinhança?...  cavaqueiras?… – Com as árvores sim!...Vale a pena.
Loucura?... Talvez…
Talvez, passado um certo tempo, a loucura seja o que se espera no indivíduo lúcido que justifica as suas teimosias e irredutibilidades defendendo a ideia: “Deve-se ver as coisas como elas são!...”)… E porque não (?).
… E por todo o lado era o silêncio. Para mim era o silêncio… ficavam no fundo das gavetas todas as cartas de recomendação, certificados de competência e credenciais que respeitavam outros valores que não fossem os valores da simplicidade e do silêncio. E que outras coisas serão melhor que a simplicidade e o silêncio?...

Um pássaro ao alcance da minha enfraquecida visão voava linearmente a velocidade constante, transcendendo tudo o que não soubesse e que a mim não fazia falta saber  (nem a ele fazia falta saber). E enquanto isto, uma abelha de tamanho invulgar, que quase me assustou, poisou (abordou-me). Eu não sabia de onde vinha tal criatura, nem onde poisara antes. Aquietou-se perto da minha chávena. Não se aproximou decerto atida à cafeína e com apetite a ela… (as abelhas não tem noção alguma dos prejuízos e dos benefícios da cafeína). Deslocou-se ligeiramente e pôs-se a chupar no vidrado à volta do estampado do pires, qualquer coisa que me eu não enxergava (não distingui a olho nu o que era). A seguir a criatura ficou imóvel, como que, tendo-se consolado, pretendesse fazer uma digestão em tranquilidade. Ou então, quem sabe, talvez lhe interessasse experimentar uma conversa comigo.





M. Gama Duarte

                                                                                                                                        
    

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015




Capa da 1.ª edição da Série Colecção RECORTES (poemas), editada pelo Círculo Juvenil de Cultura em Maio do ano de 1983. 




Capa da 2.ª edição da Série Colecção RECORTES (poemas), editada pelo Círculo Juvenil de Cultura em Maio do ano de 1984. 






De memória…
Breve referência à existência do Circulo Juvenil de Cultura


O Circulo Juvenil de Cultura teve o seu tempo, e fez história, em plenos anos oitenta na cidade de Lisboa. Constituiu-se – assumindo a denominação de Cooperativa Cultural – por iniciativa de um grupo de jovens ainda estudantes, ao tempo a frequentar cada um o seu curso universitário.

O Recortes 2 – publicado um ano depois da publicação do Recortes 1 – reuniu poemas e desenhos de gente de dentro e de fora do Circulo Juvenil de Cultura.
Foram participantes neste Recortes 2 – no ano em que o C.J.C. completava quatro anos de existência –, José Alfaro; Rosa Maria Duarte; M. Gama Duarte; José Ribeiro Marto; Helena Cunha; Elizabeth Meneses; Fátima Dias; Xico Raposo; Artur Cordeiro; Kika; Pedro; Paulo Mestre; José Junça.

José Junça (José de Matos Junça: 1912 – 2009) – poeta alentejano natural de Avis (Distrito de Portalegre) – veio pela primeira vez ao encontro do Circulo Juvenil de Cultura numa manhã de fim de semana, juntando-se ao grupo num celebre pequeno café do Bairro da Ajuda em Lisboa, onde o C.J.C. por vezes se reunia. Traçavam-se por essa altura as primeiras linhas do plano para a feitura e edição do Recostes 1.  
A 17 de Junho do ano de 1983 – no intervalo entre o lançamento do Recortes 1 e o lançamento, um ano depois, do Recortes 2 – José Junça festeja o seu 71.º aniversário (o “jovem” de idade mais avançada que integrou o grupo).    

Precisamente passado um ano do lançamento do Recortes 1, realiza-se o lançamento do Recortes 2 – o qual decorreu, de forma original, em Maio do ano de 1984 nos degraus da entrada principal da Faculdade de Letras de Lisboa, e à vista de olhos curiosos que, informados ou não do acto simbólico que ali acontecia, simplesmente passavam ou então, dando mais atenção ao evento, se aproximavam e permaneciam observando com o propósito de mais ficarem a saber sobre as actividades do C.J.C.
De 500 exemplares foi a tiragem do Recortes 2 – edição numerada e com a chancela do Circulo Juvenil de Cultura.

Um dos exemplares do Recortes 2 foi suspenso em dúzia e meia de balões de cores variadas, e, respeitando a ordem do guião, à hora estipulada para o lançamento esse exemplar que se havia prendido os balões por fios de algodão, foi levado a todo o gás ao encontro das nuvens.
Onde teria ele ido parar? (…) – de nenhum lugar chegou notícia. Provavelmente algures em terras a Sul (Além Tejo) – isto se o vento entretanto não mudou...



M. Gama Duarte
  

domingo, 18 de janeiro de 2015



Desenho que ilustra o poema Abelha-Flor escrito pelo poeta José Junça – desenho e poema incluídos na 1.ª edição da série Colecção RECORTES (RECORTES 1 - colectânea de poemas de vários autores, com ilustrações alegóricas, editada pelo Círculo Juvenil de Cultura em Maio do ano de 1983.





E para que tudo no final
fosse perfeito…
(A lenda)


A longínquas praias
de finíssima madrepérola,
chegava Doroteia
e sentava-se…
(sentava-se
como se sentam as sereias)

Seu olhar inventava ogivas,
astros,
arco-íris,
quimeras,
claustros,
palácios…
solares
e portais.
(… Sabia que era o tempo
das áureas neblinas…)

Seu dedos
finos e longos,
lembrando alvas asas
de querubim,
nos seus cabelos se entrelaçavam…
e Doroteia oferecia-se
de rosto ao luar.

E correndo-lhe na boca
um gosto quente a água,
ciosa perguntava:
– Onde afinal se escondem
as nascentes dos beijos (?...)
… e qual o segredo
das líquidas línguas de lume e de perfume
em que os beijos se transformam(?...)

E para que tudo
no final  
fosse  perfeito,
Doroteia dava ao corpo
a suave inclinação dos rios.





M. Gama Duarte
  

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015




Pintura
Sem título
Temática: A janela e a cruz
Materiais: Aguarela, pastel, lápis de cor e tinta-da-china.
Suporte: Papel  





Lauro Telmo
e a sua ecologia do silêncio

(Crónica)




– “O homem, a tela… o silêncio.
… Sim: o homem… a tela… Mas também o silêncio…
(triangular combinação enigmática e alquímica)
E em cada vértice seu elemento… E cada elemento em seu vértice afirmando-se em excelência”…
 Falava assim (ou dizia) Lauro Telmo que, naquele instante, em frente de um dos cavaletes que tinha sempre a postos, dialogava com os seus botões no sossego do atelier onde pintava – atelier que se situava nas águas-furtadas de um velho prédio do antigo bairro da sua cidade natal.        
Mas um outro elemento avizinhava-se de visita (Lauro Telmo sentia-o – reconhecia-o). E assim, a esses três elementos já presentes, juntava-se um quarto elemento: a Ideia, ou a inspiração; a graça, ou o mistério… (uma ou outra coisa… – ou qualquer que ela seja – numa quase perfeita simbiose).
Mas, qualquer que seja o sentir no momento, o quarto elemento precede o acto criativo no concreto, e confere ao acto uma espécie de (ou um particular) sentido ecológico

E assim decorre o processo: um dos três vértices do triângulo imaginário abre-se (dissipa-se)… E Lauro Telmo assiste à prodigiosa transformação daquela angular geometria. Gere-se uma nova amplitude: agora quatro vértices em vez de três... Agora os quatro elementos em plena assunção… – uma combinação entre sublimes afinidades, e em solenidade e excelência.
 “Agora o homem, a tela, o silêncio… e a inspiração (ou a ideia… ou a graça, ou o mistério…)” – assim pensou, e é natural que Lauro Telmo assim pensasse.

Chegado o momento, Lauro Telmo pode imaginar, por antecipação, a obra concluída… – imaginá-la, enquanto realidade, de constituição densa por efeito de sucessivas aplicações de camadas de óleo, de acrílico, ou de outra qualquer matéria manuseável e que possua razoável plasticidade, textura e intensidade de cor.
Por outro lado, se for o caso de ser usada, no acto da execução (ou materialização da obra), uma técnica mais leve que produza alguns e certos efeitos minimalistas, a tela apresentar-se-á com consideráveis espaços privados de tinta, sem que essas aberturas, ou ausências de matéria plástica, diminuam o valor final da obra. Pois, em contraste, ou em alternância com os espaços em branco, pode ser riquíssimo o jogo harmónico e o equilíbrio cromático e estético, produzido pelas pinceladas escassas e soltas (escassas e soltas, mas precisas). E mesmo os espaços em branco de que se fala, participam vigorosamente e com forte presença em tal composição… E a obra final apresentar-se-á com uma surpreendente coerência… – uma coerência que impera acima de qualquer rubor de conflitualidade entre cores, planos, zonas do suporte que se mostrem em branco (ou de reserva), contrastes, formas… etc.
E, concluída que esteja a obra, Lauro Telmo pode aprecia-la, analisá-la, divagar ou dissertar, dispersar-se em considerações em que terá presente conceitos sobre o sentido do abstracto, a aplicação de técnicas variadas, a estética, as possíveis leituras no plano e domínio do subjectivo ou do filosófico… (e outras possíveis considerações). 


A relação de Lauro Telmo com a arte era uma espécie de laboratório onde ensaiava emoções, experimentava físicas sensações, onde redescobria as virtualidades e prazeres dos seus sentidos e variantes da sua sensibilidade. E era também uma oportunidade de estudo das probabilidades da inexistência de limites quando se viaja em liberdade no espaço/tempo consagrado a toda a arte que o divino entende abençoar.
Lauro Telmo tirara a claro uma conclusão (ou acreditava que o havia conseguido):
A leitura simples e essencial das coisas não reduz a percepção e o reconhecimento da beleza, da originalidade, da consistência estrutural e da força vital e comunicativa do objecto ou da obra artística… Ele passara a ver o simples e o essencial aliados numa imperiosa disciplina de economia que um particular e específico sentido de ecologia acolhia. E em tudo, ao cabo e ao fim, expressa-se na atitude ecologista a forma de economia mais pura e natural.

Nos tempos em que Lauro Telmo ainda era criança, quando alguém dele se aproximava e lhe perguntava o que queria vir a ser quando chegasse a adulto, ele tinha sempre a resposta à saída da boca (que vinha do seu íntimo): “Quero ser pintor!”

Lauro Telmo teve uma infância feliz. Conserva generosas recordações desses recuados tempos… – memórias das fabulosas brincadeiras ao “faz de conta” com que se entretinha… – brincadeiras que têm subtis raízes que se alimentam da mais pura e singela inocência, fantasia, imaginação… e que se alimentam ao mesmo tempo de uma cristalina percepção da essência do real.
Uma das mais vivas memórias da sua infância é a memória de um mágico silêncio em que muitas vezes submergia…

Lauro Telmo, através da observação da arte mímica de Marcel Marceau, havia extraído a prova de que tudo pode ser compreendido no seio do silêncio, e à sua transparência… – o que equivale a dizer que o silêncio proporciona ao ser humano uma ímpar oportunidade de percepcionar e compreender o que existe de profundamente mais real no milagroso processo através do qual se desperta para a beleza e para a natureza divina de cada ser, criatura, ou coisa.
Oferece-se por ventura neste processo que atrai, não raramente, as substâncias dos sonhos, uma realidade material menos palpável mas, sem dúvida, fabulosa e extraordinariamente expressividade.     

Lauro Telmo ficava fascinado todas as vezes que via pela TV os espectáculos de mímica de Marcel Marceau.
Lauro Telmo bem se recorda daquele dia em que a mãe, com um especial brilho, vivacidade e ternura no olhar, serenamente lhe dissera: “Sabes, meu filho?... Entre as mãos e o coração de Marcel Marceau, tanto cabe a pequena andorinha que se perde no azul do céu de um imenso deserto, como cabe um enorme astro (um planeta por exemplo) que descreve a sua trajectória na distante galáxia da qual é filho e à qual pertence”.
– “O quê, mãe?” – quis Lauro Telmo entender... – perceber o que a mãe lhe havia dito daquela maneira (com aquelas palavras) que o deixou deveras curioso, mas ao mesmo tempo confuso. Mas de seguida a mãe explicou-lhe tudo de uma maneira mais simples, e Lauro Telmo então compreendeu.                  
       
              

                                                                                                M. Gama Duarte

                                                                                             05 de Janeiro de 2009


Pintura
Sem título
Temática: A janela e a cruz
Materiais: Aguarela, pastel, lápis de cor e tinta-da-china.
Suporte: Papel  




Desenho que ilustra o poema da autoria do poeta José Junça, intitulado Primavera, com apresentação na 1.ª edição da série Colecção RECORTES (poemas) editada pelo Círculo Juvenil de Cultura em Maio do ano de 1983.


Duplo Retracto

Imagem recolhida do livro RE COMEÇAR – Almada em Madrid, com texto de Ernesto de Sousa, e publicado pela IMPRENSA NACIONAL – CASA DA MOEDA, sob a Colecção arte e artistas





… Porque não aqui para sempre?...

(crónica)




Ali era bom: riam-se; entrelaçavam gestos de afecto; acenavam à chegada das faluas e das traineiras; falavam de poesia e dos poetas; divagavam sobre o rumo dos paquetes e dos veleiros… E questionavam-se:
Será que na textura das asas das gaivotas também se lêem as linhas que rezam o rumo dos destinos?

Gostavam daquela esplanada de acesso complicado… mas que mesmo assim frequentavam.
(Nos dias que corriam, para eles aquele retiro era já paradeiro certo… E, com o tempo, o conhecer aquele lugar – do qual tiravam benefício todos os que se iam fazendo clientes habituais –, passava a ser um privilégio.

“Varandim Azul MarCafé Cervejaria – vinhos e petiscos”... – nome bem visível no letreiro a sobressair junto ao umbral, e a puxar a atenção pelo facto de se apresentar em letra de estilo escavada em pinho velho e pintada de frescas tonalidades de rosa, amarelo, turquesa e azul marinho.

… E de Frederico das naus?... que dizer do velho e amigo Frederico das naus?...
– Um rosto familiar… e o homem que, trinta anos atrás, numa soalheira manhã de Maio reabria ao público as portas daquele acolhedor e centenário estabelecimento – honrando assim uma herança que recebera de boas mãos e em boa altura… E bem-aventurada a Primavera em que foi tomada essa definitiva decisão, porque permitiu que uma tradição ancestral não tivesse que contar os seus últimos dias de existência.

– “Varandim Azul Mar…o nosso refúgio a céu aberto, e secreto... Aqui é bom!...” – repetidamente Orlando e Fabíola comentavam entre si todas as vezes que ali voltavam, considerando já aquele lugar o seu refúgio secreto… e a céu aberto… E apenas seu, como se realmente por eles tivesse sido inventado… e como se por ali apenas eles fossem vistos e achados.  

Desde tempos remotos que se ouve dizer que o mundo é pequeno. Mas Orlando não sabia se em algum tempo da história tal constatação foi com toda a certeza boa notícia (em algumas épocas e circunstâncias provavelmente, ou de certeza, o foi. Mas noutras talvez não… E casos bem complexos haverá em que surgem e perduram as dúvidas…)     

Afirmação e (ou) razão… – o eterno dilema. E de uma à outra margem – da afirmação à razão (isto enquanto dura a controversa travessia) – a verdade bóia sem que, à partida, se antecipe o destino ou o ponto onde encontrará porto.
Gladiam-se hipóteses no âmbito das possíveis explicações… (analisam-se as causas e os efeitos). E sempre os pólos inseparáveis. E, momento após momento – (e aqui e ali) – o içar do estandarte que anuncia a incerteza relativamente ao triunfo e glória da harmonia e do equilíbrio.   
Mas afinal quem sabe se a sabedoria pura-pura consiste no conhecimento que as aves possuem como patente sua (?) – questionava Orlando.
… E Orlando avançava ainda com aquela teoria – que era sua – um tanto ou quanto delirante, irónica, excêntrica ou surrealista… mas sua:
 “… Ora se o mundo é pequeno, é porque o mundo diminuiu de massa, de forma e de peso… pelo facto de ter vindo, pouco a pouco, a desgastar-se e a desfazer-se… ou seja: a finar-se”.

Mas Orlando, lá no fundo de si, sempre preferiu um mundo grande… (“inimaginável… incomensurável”) – mundo onde um homem (ou mulher) se perderia entre biliões de milhas, e entre biliões de léguas… – um mundo tão grande, e de tal maneira surpreendente e impossível, que a superfície terrestre desse mesmo mundo ficaria tão perto da superfície da lua em sua órbita que, de um para o outro astro, se medisse simplesmente o comprimento de um salto de gazela ou de um passo de mulher… Pois um mundo assim – com tal grandeza –, seria um mundo de intermináveis e fabulosas oportunidades… – até com espaço de reserva, ou de sobra, para lugares à semelhança do “Varandim Azul Mar”: lugar de laser desterrado… Desterrado mas tranquilo… E raro, e belo… e só assim compreendido como lugar à escala, ou de proporções ao jeito de Orlando e Fabíola.

A imagem do velho Frederico das naus reaparecia recortada a contra luz.
Atrás de si a entrada estreita do bar bafejava uma dourada penumbra onde trémulos e coloridos reflexos se plasmavam.
O sorriso no rosto de Frederico ia puxando pelos seus passos lentos, que pareciam segui-lo… – como se todo ele: sua materialidade visível e presença holística – acudisse aos leves e suaves sons e aromas… e às cores reunidas num gigantesco punhado de crepúsculos.
Mas o sorriso e os passos de Frederico das naus respondiam também à apelativa presença, calma e doce, do ainda jovem casal.

Frederico das naus estimava aqueles seus clientes de longa data. E lá andava o velho Frederico: os seus passos lentos; o seu sorriso que traduzia a franca afabilidade contida no simbólico abraço de apreço pelos habituais rituais dos seus enigmáticos (mas simpáticos) clientes. E, por consideração, de modo especial ele os servia:
– “Aqui tendes, amigos… – a vosso gosto: as vossas taças… (ainda taças produzidas em fino vidro das antigas, tradicionais e afamadas, vidreiras da Marinha Grande). Especial atenção da minha parte para com vocês, por se tratar dos meus caros amigos… E ainda quanto às taças, é o melhor tinto alentejano que cá tenho a enchê-las… para que brindem e bebam com satisfação, e se sintam bem”.
…   

– “Mais um Tchim-Tchim… (mais um…) À vida! … – à vida e a tudo o ela contem que faça sentido – propunha Fabíola, ao mesmo tempo que os seus longos cabelos, de um castanho muito claro – quase loiro –, pendiam para o seu ombro direito ao inclinar ligeiramente o rosto. E, do mesmo lado, com os seus finos dedos, Fabíola tocava com delicadeza a base da taça que ergueria ao mesmo tempo que Orlando ergueria a sua. Era um sinal: um gesto continuado por outros gestos… – como que uma liturgia dando expressão a algo que revelava uma vontade comum (coisa que eles muito gostavam: brindar às coisas da vida que tinham um claro propósito. E gestos em que um e o outro, e um perante o outro, se redescobriam, se reconheciam e entendiam… em que reafirmavam, olhos nos olhos, um compromisso assente em sentimentos, e um vinculo canónico já de muitos anos. E por assim dizer e ser: gestos que num único gesto se fundiam).                     
“Aqui é bom…” – dizia Orlando… e dizia Fabíola… Diziam-no num quase tom ou num tom quase (tom em tudo quase igual àquele tom com que se pronunciava o silêncio que ali podiam escutar). E Orlando continuou:
– “Fabíola… E se hoje não fossemos lá àquele outro sítio, e só lá fossemos depois (mais tarde)?... Fiquemos antes assim perto deste mar e do crepúsculo extraordinário que nos espera.
A cidade é bela também, bem sei… – sabemos isso… E é a nossa cidade mãe… Lá nascemos, e nasceram também os nossos descendentes… E também é belo o rio que a cidade tem a “afagar-lhe os pés”: o Tejo… Mas apetece-me agora a paz que este lugar aqui nos oferece, e apetece-me este momento… E até há alturas em que me parece que só aqui – neste lugar – existe a possibilidade de ficarmos tranquilos... E há dias em que quase não aparece nem vemos vivalma chegar próximo deste nosso espaço…      
Por estas razões encontro sentido nestes nossos momentos.
Foi aqui que fomos inventando este imenso mundo que nos recebe e nos acarinha. Repara que aqui existe mais próximo dos nossos olhos, mais próximo dos nossos ouvidos… mais próximo das glândulas que nos comunicam a essência deste aroma a iodo e sal, um horizonte único (nosso). E é igualmente possível aqui um certo paraíso – um paraíso onde se tornam musicais todos os ventos e brisas que dentro de nós sopram...
…E se ficasse-mos aqui para sempre, Fabíola?...          
Fabíola esboçou um sorriso afirmativo sem a mais ténue vacilação… – um sim que um leve aceno de cabeça agraciava… E esse acordo, estabelecido num cenário de fantasia que muito bem dominavam, selavam-no erguendo pela segunda vez, com solenidade, as suas taças de vinho.
– “Claro… Num outro dia (vamos lá à cidade num outro dia) – assentou Fabíola fitando Orlando, e ao mesmo tempo consentindo que o mesmo ar sorridente de há instantes regressasse ao seu rosto.
E, para surpresa de Orlando, era agora Fabíola que, retendo o sorriso, colocava a mesma hipótese:                   
– “E porque não, voltarmos depois aqui e aqui ficarmos para sempre?...”            



M. Gama Duarte





quinta-feira, 8 de janeiro de 2015



“O sangue  das  cores”



Toma em teus dedos
o  fio de prata
que desenha
o perfil das tuas asas,
e poderás assim escrever:
”Sim!…
falarei do sangue das cores,
e das musicais
nervuras do silêncio…”



Hoje vi-te…
…  – acordavas de bruços
sobre o parapeito do tempo…
(O Sol gelava-te a boca…
e nos campos havia um ninho de palavras
alojado no coração das árvores…)
… E eu esperava que gritasses:
“Sim!... tenho cede de seiva e de néctar!…”

(Bem eu sabia que chegara o tempo das abelhas…
e que por isso poderias
também gritar , caso quisesses:
“ Sim!…
falarei do sangue das cores!…
… e é tempo de sentir o vibrar
das musicais nervuras
do silêncio”).


M. Gama Duarte