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sexta-feira, 16 de janeiro de 2015


Duplo Retracto

Imagem recolhida do livro RE COMEÇAR – Almada em Madrid, com texto de Ernesto de Sousa, e publicado pela IMPRENSA NACIONAL – CASA DA MOEDA, sob a Colecção arte e artistas





… Porque não aqui para sempre?...

(crónica)




Ali era bom: riam-se; entrelaçavam gestos de afecto; acenavam à chegada das faluas e das traineiras; falavam de poesia e dos poetas; divagavam sobre o rumo dos paquetes e dos veleiros… E questionavam-se:
Será que na textura das asas das gaivotas também se lêem as linhas que rezam o rumo dos destinos?

Gostavam daquela esplanada de acesso complicado… mas que mesmo assim frequentavam.
(Nos dias que corriam, para eles aquele retiro era já paradeiro certo… E, com o tempo, o conhecer aquele lugar – do qual tiravam benefício todos os que se iam fazendo clientes habituais –, passava a ser um privilégio.

“Varandim Azul MarCafé Cervejaria – vinhos e petiscos”... – nome bem visível no letreiro a sobressair junto ao umbral, e a puxar a atenção pelo facto de se apresentar em letra de estilo escavada em pinho velho e pintada de frescas tonalidades de rosa, amarelo, turquesa e azul marinho.

… E de Frederico das naus?... que dizer do velho e amigo Frederico das naus?...
– Um rosto familiar… e o homem que, trinta anos atrás, numa soalheira manhã de Maio reabria ao público as portas daquele acolhedor e centenário estabelecimento – honrando assim uma herança que recebera de boas mãos e em boa altura… E bem-aventurada a Primavera em que foi tomada essa definitiva decisão, porque permitiu que uma tradição ancestral não tivesse que contar os seus últimos dias de existência.

– “Varandim Azul Mar…o nosso refúgio a céu aberto, e secreto... Aqui é bom!...” – repetidamente Orlando e Fabíola comentavam entre si todas as vezes que ali voltavam, considerando já aquele lugar o seu refúgio secreto… e a céu aberto… E apenas seu, como se realmente por eles tivesse sido inventado… e como se por ali apenas eles fossem vistos e achados.  

Desde tempos remotos que se ouve dizer que o mundo é pequeno. Mas Orlando não sabia se em algum tempo da história tal constatação foi com toda a certeza boa notícia (em algumas épocas e circunstâncias provavelmente, ou de certeza, o foi. Mas noutras talvez não… E casos bem complexos haverá em que surgem e perduram as dúvidas…)     

Afirmação e (ou) razão… – o eterno dilema. E de uma à outra margem – da afirmação à razão (isto enquanto dura a controversa travessia) – a verdade bóia sem que, à partida, se antecipe o destino ou o ponto onde encontrará porto.
Gladiam-se hipóteses no âmbito das possíveis explicações… (analisam-se as causas e os efeitos). E sempre os pólos inseparáveis. E, momento após momento – (e aqui e ali) – o içar do estandarte que anuncia a incerteza relativamente ao triunfo e glória da harmonia e do equilíbrio.   
Mas afinal quem sabe se a sabedoria pura-pura consiste no conhecimento que as aves possuem como patente sua (?) – questionava Orlando.
… E Orlando avançava ainda com aquela teoria – que era sua – um tanto ou quanto delirante, irónica, excêntrica ou surrealista… mas sua:
 “… Ora se o mundo é pequeno, é porque o mundo diminuiu de massa, de forma e de peso… pelo facto de ter vindo, pouco a pouco, a desgastar-se e a desfazer-se… ou seja: a finar-se”.

Mas Orlando, lá no fundo de si, sempre preferiu um mundo grande… (“inimaginável… incomensurável”) – mundo onde um homem (ou mulher) se perderia entre biliões de milhas, e entre biliões de léguas… – um mundo tão grande, e de tal maneira surpreendente e impossível, que a superfície terrestre desse mesmo mundo ficaria tão perto da superfície da lua em sua órbita que, de um para o outro astro, se medisse simplesmente o comprimento de um salto de gazela ou de um passo de mulher… Pois um mundo assim – com tal grandeza –, seria um mundo de intermináveis e fabulosas oportunidades… – até com espaço de reserva, ou de sobra, para lugares à semelhança do “Varandim Azul Mar”: lugar de laser desterrado… Desterrado mas tranquilo… E raro, e belo… e só assim compreendido como lugar à escala, ou de proporções ao jeito de Orlando e Fabíola.

A imagem do velho Frederico das naus reaparecia recortada a contra luz.
Atrás de si a entrada estreita do bar bafejava uma dourada penumbra onde trémulos e coloridos reflexos se plasmavam.
O sorriso no rosto de Frederico ia puxando pelos seus passos lentos, que pareciam segui-lo… – como se todo ele: sua materialidade visível e presença holística – acudisse aos leves e suaves sons e aromas… e às cores reunidas num gigantesco punhado de crepúsculos.
Mas o sorriso e os passos de Frederico das naus respondiam também à apelativa presença, calma e doce, do ainda jovem casal.

Frederico das naus estimava aqueles seus clientes de longa data. E lá andava o velho Frederico: os seus passos lentos; o seu sorriso que traduzia a franca afabilidade contida no simbólico abraço de apreço pelos habituais rituais dos seus enigmáticos (mas simpáticos) clientes. E, por consideração, de modo especial ele os servia:
– “Aqui tendes, amigos… – a vosso gosto: as vossas taças… (ainda taças produzidas em fino vidro das antigas, tradicionais e afamadas, vidreiras da Marinha Grande). Especial atenção da minha parte para com vocês, por se tratar dos meus caros amigos… E ainda quanto às taças, é o melhor tinto alentejano que cá tenho a enchê-las… para que brindem e bebam com satisfação, e se sintam bem”.
…   

– “Mais um Tchim-Tchim… (mais um…) À vida! … – à vida e a tudo o ela contem que faça sentido – propunha Fabíola, ao mesmo tempo que os seus longos cabelos, de um castanho muito claro – quase loiro –, pendiam para o seu ombro direito ao inclinar ligeiramente o rosto. E, do mesmo lado, com os seus finos dedos, Fabíola tocava com delicadeza a base da taça que ergueria ao mesmo tempo que Orlando ergueria a sua. Era um sinal: um gesto continuado por outros gestos… – como que uma liturgia dando expressão a algo que revelava uma vontade comum (coisa que eles muito gostavam: brindar às coisas da vida que tinham um claro propósito. E gestos em que um e o outro, e um perante o outro, se redescobriam, se reconheciam e entendiam… em que reafirmavam, olhos nos olhos, um compromisso assente em sentimentos, e um vinculo canónico já de muitos anos. E por assim dizer e ser: gestos que num único gesto se fundiam).                     
“Aqui é bom…” – dizia Orlando… e dizia Fabíola… Diziam-no num quase tom ou num tom quase (tom em tudo quase igual àquele tom com que se pronunciava o silêncio que ali podiam escutar). E Orlando continuou:
– “Fabíola… E se hoje não fossemos lá àquele outro sítio, e só lá fossemos depois (mais tarde)?... Fiquemos antes assim perto deste mar e do crepúsculo extraordinário que nos espera.
A cidade é bela também, bem sei… – sabemos isso… E é a nossa cidade mãe… Lá nascemos, e nasceram também os nossos descendentes… E também é belo o rio que a cidade tem a “afagar-lhe os pés”: o Tejo… Mas apetece-me agora a paz que este lugar aqui nos oferece, e apetece-me este momento… E até há alturas em que me parece que só aqui – neste lugar – existe a possibilidade de ficarmos tranquilos... E há dias em que quase não aparece nem vemos vivalma chegar próximo deste nosso espaço…      
Por estas razões encontro sentido nestes nossos momentos.
Foi aqui que fomos inventando este imenso mundo que nos recebe e nos acarinha. Repara que aqui existe mais próximo dos nossos olhos, mais próximo dos nossos ouvidos… mais próximo das glândulas que nos comunicam a essência deste aroma a iodo e sal, um horizonte único (nosso). E é igualmente possível aqui um certo paraíso – um paraíso onde se tornam musicais todos os ventos e brisas que dentro de nós sopram...
…E se ficasse-mos aqui para sempre, Fabíola?...          
Fabíola esboçou um sorriso afirmativo sem a mais ténue vacilação… – um sim que um leve aceno de cabeça agraciava… E esse acordo, estabelecido num cenário de fantasia que muito bem dominavam, selavam-no erguendo pela segunda vez, com solenidade, as suas taças de vinho.
– “Claro… Num outro dia (vamos lá à cidade num outro dia) – assentou Fabíola fitando Orlando, e ao mesmo tempo consentindo que o mesmo ar sorridente de há instantes regressasse ao seu rosto.
E, para surpresa de Orlando, era agora Fabíola que, retendo o sorriso, colocava a mesma hipótese:                   
– “E porque não, voltarmos depois aqui e aqui ficarmos para sempre?...”            



M. Gama Duarte





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