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M. Gama Duarte / 2016
(Instalação/Cenário)
Título:
Ilustração para
Raminho de Oliveira
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Raminho
de Oliveira
Foste bandeira…
Foste
estandarte !…
Foste
coluna de alabastro…
Hoje acordei (do modo como habitualmente acordo) com o agudíssimo alarme do
despertador de cabeceira a ferir-me impiedosamente por dentro… (magoando-me os
ouvidos; o cérebro; o peito… – todas as minhas entranhas) – e ele sempre a avisar-me
que vão já sendo horas…
E hoje – (pelas 7,30 h da manhã… ou à volta disso) – um esplendido dia de
Sol a prometer-se.
. . .
Levantei-me e, antes de
mais, a certeira e inevitável corrida ao quarto de banho.
Concluída a minha higiene
básica (nada de complicado) – aqueles cuidados que se recomendam – umas voltinhas
mal medidas, e à toa, pelos recantos da casa… E a minha súbita aparição perturbando
a quietude das coisa… e até eu próprio a mim me surpreendendo ao ver-me assim tão
madrugador… E, mais estranho ainda, tudo isto numa manhã de domingo.
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M. Gama Duarte / 2016
(Instalação/Cenário)
Título:
Ilustração para
Raminho de Oliveira
(pormenor 1)
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Deambulando meio acordado, contornei a mesa da sala de
jantar; de perfil desengonçado descansei em todas as ombreiras e esquinas; rocei,
quase em desequilíbrio (mas a tempo de me recompor), as aduelas das entradas
das restantes divisões… Lancei um olhar de relance às lombadas dos livros que repousam
nas estantes… e uma outra olhadela às revistas em monte nas cadeiras –
desarrumação que se eterniza por falta de campo nas prateleiras onde fosse
possível enfiá-las… Enfim.
Quando entrei na cozinha, entre a garrafaria despejada
e copos sujos da noite que faço por esquecer, encontrei encostado à fruteira de
verga um saco de plástico transparente, e aberto, onde o meu olhar se fixou
demoradamente. Dentro do saco encontravam-se esquecidos restos de pão. Avancei
dois passos; peguei no saco.
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M. Gama Duarte / 2016
(Instalação/Cenário)
Título:
Ilustração para
Raminho de Oliveira
(pormenor 2)
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Ao lava-loiça
humedeci os restos de pão num fio de água que fiz correr quase e só por pensar
em fazê-lo. Transportei depois, até à marquise envidraçada da sala, os pedaços de
pão molhados num recipiente de inox redondo e fundo. E, por entre peças de
roupa estendida, alcancei uma frincha estreita onde mal me coube um braço, e,
através dela, lancei todo o conteúdo do recipiente…
Os pedaços de pão cruzaram ao largo o estendal da vizinha do 1.º andar (a vizinha mais antiga
no prédio, e que quase não sai).
O pão cruzou também ao largo o estendal do rés-do-chão
onde julgo que vive a ave exótica que acorda cedo aos domingos e enche a manhã
com o seu cantar excêntrico que me diverte…
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M. Gama Duarte / 2016
(Instalação/Cenário)
Título:
Ilustração para
Raminho de Oliveira
(pormenor 3)
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Por estas bandas, a horas mansas, um assomar de rosto ou
um esticar de braço à janela, ou à varanda, é um sinal de aviso que não escapa
a uma diversificada população atenta: pombos, rolas, gaivotas, pardais… e
outras espécies que mal defino, mas que todos os dias para ali imbicam
e se misturam com as demais.
Um proeminente bater de asas enche o jardim da
praceta... Uma nuvem em movimento frenético vai engrossando… – dezenas e
dezenas de asas (partem do alto, como que em debandada, desertificando beirais,
chaminés, cordas de estendais de apartamentos temporariamente desabitados,
postes de iluminação, topos de candeeiros públicos, etc… etc…).
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Motivo:
Pombo da Rua
da Lapa
(Foto:
M. Gama Duarte/2016)
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Poderia contar dezenas… dezenas e dezenas de pombos,
rolas, gaivotas, pardais, etc… etc. Mas talvez não tantas dezenas, e decerto
não me impressionando tanto como me impressionava um outro similar espectáculo
de que me recordo: logo ao despontarem os primeiros raios de sol (diariamente –
e sempre… e sempre) – pombos e pardais (e neste caso apenas pombos e pardais)
–, ocupavam o quintal traseiro daquela cave do n.º 26 da Travessa das Almas à
Lapa (Lisboa) – andar que a minha mãe continuou a habitar depois de o marido (e
meu pai) lhe faltar no ano de 1987.
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Motivo:
Pombo da Rua
da Lapa
(Foto:
M. Gama Duarte/2016)
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Mas hoje ao observar através da janela da marquise do
apartamento que habito aqueles animais a deslocarem-se pelo céu – lembrando os
anjos (voando) –, em mim não deixam de existir, e de sobreviver, motivos que
me inspiram a trata estas aves por ovelhas.
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Motivo:
Pombo da Rua
da Lapa
(Foto:
M. Gama Duarte/2016)
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Ajudo-as a alimentarem-se a partir deste 2.º andar
onde habito com a minha família. E por aqui e por ali, sobre erva sempre
viçosa, estas aves vão comendo o pão que lhes botam, como se pastassem à
semelhança das ovelhas pelos campos…
Todavia, nunca achei que lhes devia pôr nome com o
propósito de as distinguir (podendo assim reconhece-las onde quer que as visse).
Também nunca me ocorreu baptizar aquela velha oliveira
que também vejo através da mesma janela à qual me inclino…
Na vida real, e no conto semi-verdadeiro que intitulei “A
Oliveira e o Tocador de Concertina”, a oliveira é simplesmente uma oliveira
– um ser que não tem necessidade que para nome lhe inventem um outro diferente do seu real nome: oliveira… Porém, nas fábulas acontece haver personagens de
natureza não humana com nome de gente.
Mas a oliveira das traseiras do meu prédio não
precisaria dessa personificação ou atributo humano (de um nome de gente) para
que dela me abeirasse e lhe pedisse que me dispensasse (que me permitisse que lhe roubasse) uma pequenino raminho… (teria esperança que me compreendesse no gesto de lhe arrancar um
pequeno pedaço de si).
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M. Gama Duarte / 2016
(Instalação/Cenário)
Título:
Ilustração para
Raminho de Oliveira
(O casal)
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Eu poderia todavia explicar-lhe: “Não sei se saberás cara amiga oliveira (?)… é que prometi a mim mesmo
que ofereceria um raminho de oliveira a uma certa pessoa que já partiu para o
eterno, e que neste momento, e não longe daqui, aguarda esse raminho…”
. . .
Mas hoje, 5 de Fevereiro do ano de 2012, cheguei à
janela e pareceu-me ver as minhas vizinhas pombas numa inabitual agitação…
Deram conta de mim ao aproximar-me por detrás das
vidraças… E logo a seguir deram conta também do meu braço a avançar por de cima
do parapeito da janela; e talvez dessem também conta da expressão do meu rosto…
que talvez lembrasse uma página em branco (pálida) sem qualquer pinga de texto…
Talvez também dessem conta dos meus pensamentos: ora vindo… ora se esvaindo…
ora de novo claríssimos… – assim: sem de uma vez se fixarem num tempo definido… Pensamentos tropeçando
em imagens dormentes e de brilhos dúbios… – tudo numa inquietante intermitência
entre a realidade e uma miragem insustentáveis.
…
Os flocos daquele ouro
branco (os pedaços de pão amolecidos num fio de água) iam caindo e
esmigalhando-se no solo em fragmentos miúdos que num ápice desapareciam nos
bicos frenéticos e imparáveis.
Algo nesta passagem (neste desfile de pormenores;
nesta película de encantamentos e desencantos) parecia ter força invocativa da memória da
minha mãe (da mãe Maria do Rosário) – memória de uma das facetas mais generosas da sua longa
vida…
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M. Gama Duarte / 2016
(Instalação/Cenário)
Título:
Ilustração para
Raminho de Oliveira
(O casal – plano próximo)
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Assisti algumas vezes (emocionando-me…), àquele seu filantrópico compromisso…
Dizia-me ela que os pombos e os pardais já sabiam a
que horas a porta do quintal se escancarava e ela aparecia… A seguir era ela a descer
os tês degraus de pedra do quintal com as mãos ocupadas com a bacia larga de
esmalte cheia de pão.
Mas antes, enquanto ia partindo o pão duro em fragmentos cada vez mais miúdos, e os esmagava formando
uma amálgama, dizia-nos:
– “Já lá estão
fora à minha espera… Assim que desponta o Sol, lá vêem eles… e ali ficam até me
verem aparecer… não arredam pé… E já me conhecem… eles sabem bem quem é que os trata…”
(E abria-se, no fino rubor das faces de Maria do
Rosário, aquele parêntesis que se preenchia com um sonoro sorriso … – um
sorriso simples… solícito…).
– “Oiço-os logo…”
– dizia a mãe e avó Rosário… e continuava com explicações segundo o que ela
acreditava saber dos costumes daquelas pequenas aves que colhiam benefício da
generosidade da senhora caridosa da cave do n.º 26 da Travessa das Almas à Rua
de Santana à Lapa…
Na
Foto:
Maria
do Rosário Duarte
quando
jovem)
Foto de painel de azulejos pintados à mão (obra exemplar da Tradicional
Azulejaria Portuguesa), embutido na parede de frente do lado interior da
entrada do edifício (antigo convento) onde funciona a Junta de Freguesia da
Lapa (Lisboa) e o Recolhimento de Nossa Senhora do Carmo da Lapa.
. . .
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Pintura sobre tela
de M. Etelvina
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Hoje (e especialmente hoje, em que a mais ínfima gota
de água me lembra uma lágrima) ao reter-me ali por de traz das vidraças deste
segundo andar, de olhos naquele rebanho
– um rebanho diferente dos rebanhos que
pastam sobre o verde das planícies –, imaginei a minha mãe entre aquele prodigioso rebanho munido de asas (entre
aquelas ovelhas com o corpo coberto de penas em vez de pelo)… aquelas alminhas à sua volta, esvoaçando em sua órbita,
de bicos famintos fazendo subitamente desaparecer todo o pão que lhes havia distribuido. E imaginei também uma bandeira, e um estandarte… E ainda uma coluna de
alabastro, hirta e imponente, e rodeando-a bandos e mais bandos de pombos.
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Estampa antiga
de imagem de santa
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Nunca antes as
mãos hábeis do meu imaginário se havia dado à fantasia de ali içarem bandeiras
e estandartes, e erguerem majestosas colunas... Também nunca antes as mãos do meu
imaginário ali, pedra sobre pedra, haviam dado forma a uma sumptuosidade
edificação… Não porque o lugar não o merecesse; não porque fosse impossível
imaginar ali um magnífico templo dedicado (e para culto) a uma Diana, a um Xiva, a um Cristo; a um Buda… ou a uma outra entidade divina… – isto um templo magnífico e ao mesmo tempo deveras singelo… desenhando-se no seu
mármore, ao alvorecer e ao findar do dia, frescas sombras de abetos, de cedros,
de palmeiras, ou sombras de simples e discretas oliveiras que as mãos hábeis do
meu imaginário também plantariam ali à volta do majestoso templo...
Mas uma simples e discreta oliveira de verdade existe
ali… vejo-a todos os dias das mesmas janelas… (lá está) – real e a mesma de que
falo no conto semi-verdadeiro “A Oliveira
e o Tocador de Concertina” que escrevi há seis anos (Junho do ano de 2006).
No conto o tocador de concertina é presença regular e
singular… E o tio Flávio, que entra no conto, emociona-se ao ouvir nas manhãs
de domingo o tocador de concertina a ressuscitar
Bach (Johann Sebastian Bach).
No conto o tio Flávio chama ao velho tocador de
concertina o francês…
… E a velha oliveira dispensa ao velho francês a sua sombra enquanto a concertina
mágica enche com sons de Bach a ampla praceta… E os pombos, gaivotas e pardais,
vão povoando os beirais, as chaminés, os cabos eléctricos, os topos dos
candeeiros públicos... (toda a passarada descansando as suas assas e, quem sabe,
encantada escutando Bach).
Clarinha – personagem que também entra no conto –, certa
manhã de Domingo encantada e curiosa, perguntou ao tio Flávio:
– “Tio Flávio:
de onde vem esta música?... Quem está a tocá-la? ”
E o tio Flávio responde:
– “É o francês...”
E a resposta do tio ocasiona uma nova pergunta da
parte de Clarinha:
– “E quem é o
francês, tio”?
E é Dulce (a tia de Clarinha e mulher de Flávio) que
adiante intervém esclarecendo tudo sobre o misterioso personagem que despertou
a curiosidade da pequenita:
– “Sabes Clarinha
(?)… essa história do francês é uma velha fantasia criada na cabeça do teu tio
Flávio …”
. . .
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M. Gama Duarte / 2016
(Instalação/Cenário)
Título:
Ilustração para
Raminho de Oliveira
(O avião)
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Nunca me ocorreu inventar nomes para as ovelhas aladas que pastam no prado que
vejo através das minhas vidraças... Nunca achei importante, ou senti
necessidade, de as distinguir de forma a reconhecê-las onde quer que as visse… Tal
como nunca me ocorreu baptizar aquela velha oliveira que faz sombra ao tocador
de concertina do conto...
Na vida real, e no conto semi-verdadeiro “A Oliveira e
o Tocador de Concertina”, a oliveira é simplesmente oliveira… sem
necessidade que para nome lhe inventem um outro nome diferente de oliveira…
Porém nas fábulas acontece haver personagens de natureza não humana com nome de
gente.
A oliveira não precisaria dessa personificação ou atributo
humano (nome de gente) para que dela me abeirasse e lhe pedisse um raminho,
esperançado em que me compreendesse no gesto de lhe arrancar um pequeno pedaço
de si.
Mas poderia todavia explicar-lhe: “Não sei se saberás cara oliveira (?)… mas
prometi a mim mesmo que ofereceria um raminho de oliveira a uma certa pessoa
que já partiu para o eterno, e que neste momento, não longe daqui, aguarda…”
…
M. Gama Duarte
(Extracto da crónica "Raminho de Oliveira" escrita entre 5
de Fevereiro e 25 de Abril de 2012)