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sexta-feira, 3 de abril de 2015




Outros Mistérios da Cruz
Pintura

Materiais: aguarela, guache, pastel de óleo e seco, carvão







A mão suave
de um deus anónimo


E foram mais de mil as voltas que contei (…): voltas e mais voltas que o meu cérebro deu em redor da tal pergunta que a mim mesmo fazia e ainda hoje faço: Porquê?...
E a pergunta que a mim mesmo faço, ou acaba por se dilui nos interstícios do meu cérebro com as mais de mil voltas, ou retorna ao meu consciente intacta… e sem qualquer resposta.
E, a páginas tantas, paro de agonia ou paro de secura. De agonia ou de secura à semelhança da agonia, ou da secura, com que hoje acordei… e com a qual (agonia ou secura) às vezes acordo noutros dias…. E não é que em coisa estranha tenha pensado… ou, que me lembre, com coisa insólita tenha sonhado... Pois a noite dormida de ontem para o dia de hoje foi de sono profundo… Mas mal o sono chegou para me esbater o cansaço do dia que ficou para atrás… E a sede que agora me aperta, parece-me a mesma do dia de ontem… prostrado e vencido que me sinto… (afinal qualquer um de nós – seres humanos – de quando em vez temos destes dias...)  
A verdade é que pouca água tenho bebido que me mate a sede. E hoje as gotas de água que me serão necessárias para matar a sede, serão tantas quantos os passos que dei no dia de ontem caminhando meia Lisboa até que os meus olhos vissem Tejo.
E pensei: “Não sei que parte das águas deste rio enchem os afluentes, os lagos, os regatos, e os riachos que correm num certo deserto interior que às vezes comigo parece ter nascido…”
… Não sei se foi resposta para este enigma o que procurava ontem à noite quando passei à porta da Maternidade Alfredo da Costa – edifício de onde esperneando pulei para este mundo – mundo este a que já não sei (ou nunca soube até hoje) de que maneira ao certo pertenço.   
A agente da polícia que estava de serviço à porta da maternidade, ao dar por mim ali meio perdido, avançou dois passos ao meu encontro e perguntou-me se podia auxiliar-me em algum assunto. Eu disse-lhe que me deslocara ali propositadamente para saber se a minha mãe ainda se encontrava internada em alguma das enfermarias daquela maternidade… mas que provavelmente não (ela já ali não se encontrava), porque eu nascera fazia já cinquenta e picos anos... (isto uma ironia que espontaneamente me saiu no momento… – ironia talvez de palidez semelhante à que àquela hora me pigmentava o rosto).
Mas caso a solícita agente consultasse os arquivos da maternidade, viria de volta, ter comigo, na posse de todos e mais alguns fundamentos que confirmariam que a minha mãe não apenas já não se encontrava ali internada, como após o ano de 1956 jamais voltara a dar entrada nas enfermarias daquela instituição.
Que nunca a minha mãe havia entrado naquela instituição antes do ano de 1956 já eu o sabia… (nem naquela nem noutra maternidade… aliás: decerto nunca a minha mãe ocupara o seu ventre com outro que não eu).
Não sei se deva considerar esta exclusividade um privilégio pessoal (um privilégio que me fora concedido), ou se deva buscar no facto motivos para me envaidecer… (eu que até não tenho apreço por vaidades…).
Não foi egoísmo da minha parte essa exclusividade: o útero onde fui gerado ter sido aquela alcofa de carne que apenas eu conheci.
Desta mulher (a minha mãe) fui o único filho, e por pouco nem eu existia caso ela tivesse adiado a primeira e única gravidez da sua vida – ela uma mulher que havia deixado passar a sua juventude sem conhecer homem (palavras suas, das quais bem me recordo)… E só veio a casar aos 39 anos.

Em criança eu entretinha-me bem sozinho.
Embora não me sentindo infeliz (tive uma infância feliz), vivi esta estranha forma de orfandade que às vezes deixava no meu espírito uma espécie de rasto de cruzada contra uma difusa mancha de solidão interior – solidão às vezes em mim entranhada… e sentindo-a tocar-me o lado de dentro das paredes do meu corpo…
Eu podia tocar-me… – sentir-me na minha pele…
… Nasci com os braços “curtos” … e a predestinação, ou fatalidade, que fez com que nascesse “assim”, impedia as minhas mãos de se encontrem sobre o meu corpo num amplo e completo abraço. Se me abraçasse de forma que as minhas mãos se cruzassem (que nunca se cruzavam da maneira que desejava…), ficar-me-ia por abraçar apenas metade de mim: ou me abraçava tocando e sentindo unicamente o peito, ou me abraçava tocando e sentindo unicamente as costas.

Falava-me um dia a voz do sangue dizendo-me que tinha irmãos (e tenha-os… e tenho-os). Tenho dois irmãos que muito estimo (um irmão e uma irmã) do lado paterno. Não cresci à sua beira. Ficámos adultos (quase velhos) sem termos uma única vez brincado juntos… – coisa que parece ter sido uma espécie de embirração do destino. Mas acho-me também irmão de mim mesmo e irmão de todas as gentes e coisas.

Por capricho da sina de quem sou filho, não apenas sou irmão de mim próprio: sou gémeo de mim próprio. E esperanço-me nesta relação de fidelidade crónica… (que doença talvez o seja, ou talvez não).
Bebemos – eu e eu – do mesmo vinho, da mesma fonte surreal e mítica, do mesmo absinto. Sentamo-nos – eu e eu (eis o nosso corpo comum) à nossa peregrina e intemporal mesa. Ficamos frente a frente (eu e eu). E sobre a mesa as nossas taças… e cada uma das nossas duas mãos livres pega na respectiva taça.
Então, erguidas as taças, elas aproximam-se e tocam-se produzindo aquele subtil e reconhecível som do brinde aquando da celebração de algo importantíssimo. Depois, lentamente, a taça erguida pela mão direita toca o canto direito da minha boca, e a taça erguida pela mão esquerda toca o canto esquerdo da minha boca.
Somos amigos (eu e eu)… e a nossa amizade certifica-se neste ritual gesto.
Talvez ambos acreditemos numa vida eterna (?)… Mas qual de nós sobreviverá ao outro?... (eu ou eu?)…


Quantas vidas serão eternas, se houver eternidade?
Pensava nisto ao mesmo tempo que me aproximava de um sem-abrigo – isto já nas ruas da Lisboa Ribeirinha – um sem-abrigo que sossegava entre a mão peregrina de um Deus anónimo que o amparava (um claro luar), e uma trincheira de sacos de plástico sem forma mas cheios de nada e de tudo… E agasalhava-o uma manta rota e da cor do seu silêncio. Perguntei-lhe:
– “Já dormes, amigo?”
Esperei que me respondesse, mas não me respondeu… ou eu não o ouvi a responder-me.
(Nunca sabemos quando um sem-abrigo dorme, quando está acordado, quando nos vê, quando pensa, ou quando respira).
… Pois, o céu (o Sol, a Lua, as estrelas…) é uma beleza… Mas ninguém deseja tê-lo como seu único tecto…
Esta frase escrevi-a há tempos numa crónica sobre o Luís – o sem-abrigo de Alcântara (em Lisboa) que mendigava às portas da Igreja de São Pedro (mendigou… Eu vi-o durante anos). Cumprimentava o Luís e dava-lhe uma moeda quando trazia alguns trocos comigo na algibeira.   


Insisti com o sem-abrigo que encontrara nas ruas da Lisboa Ribeirinha:
– “Já dormes, amigo?”
Nesse instante ele abriu os olhos e respondeu:
– “Não!… não durmo, amigo”.
Perguntei-lhe a seguir se queria uma moeda. Pareceu-me que reagiu com indiferença à oferta que lhe fazia… mas acabou por dizer: “Tá bem, dá cá…”. Então estendeu a mão e aceitou.
Talvez me tivesse agradecido com um obrigado. Mas para mim o melhor agradecimento, ou retribuição, foi a novela extraordinária e interminável que me contou sobre a sua sorte (ou sobre a sua desgraça), que ouvi com todo o interesse.
Porém, nada lhe havia pedido, e ele também nada me havia pedido. Ou talvez eu me tivesse aproximado daquele homem, que nunca vira antes nem mais pobre nem menos pobre, contando que me desse um pouco de calor humano e de atenção.
Eu já não falava com vivalma desde o episódio havido instantes atrás, em que a agente da autoridade em serviço à porta da maternidade Alfredo da Costa, mostrando-se prestável, avançou ao meu encontro oferecendo-me auxilio.

Mais tarde, já atravessando o rio de cacilheiro… e levando comigo Lisboa nos olhos, recordava-me daquele rafeiro que apressado passou por mim lá para os lados da Rua Alexandre Herculano, e ao qual falei… mas ele sem tempo para me dar atenção… E recordava-me também daquele outro, não menos rafeiro que o primeiro, e que partilhava com um velho o patamar de entrada de uma dependência bancária de fachada envidraçada e iluminada.
Destes serenamente abeirei-me (do velho e do cão) encurtando os meus passos. Mirei o velho, e perguntei-lhe:
– “Como se chama o seu amigo”?
– “Diogo” – respondeu-me o homem.
Mirei desta vez o bichano, e comentei:
– “Gosto… gosto do nome… e fica bem esse nome ao seu amigo”.
Aproximei-me mais um pouco, e de mão aberta avancei para afagar o pelo do dócil rafeiro (tencionava saudar com intimidade e afecto o pobre bichanito).
– “À confiança” – tranquilizou-me o velho.
Confiante aproximei-me então um pouco mais, e o animal percebendo aceitou a minha mão.

Ali estavam... O destino tinha-os juntado. E não só partilhavam aquele exíguo espaço como também partilhariam aquela noite.
Retirei-me minutos depois ao mesmo passo com que me havia aproximado… e considerei uma vez mais:
– “Diogo fica bem ao seu amigo… e mais uma coisa posso dizer-lhe meu caro: há animais que merecem mais o nome de gente que certas pessoas”.
O velho sorriu, e por sua vez afagou o dorso do animal sem desmanchar o sorriso – um gesto que me dava razão: confirmava o que eu havia considerado a respeitos dos animais e dos nomes com que os humanos os baptizam.
Despedi-me com um desejo de “Boa Noite” (foram as minhas últimas palavras), e segui saltando por cima das pocinhas que as gotas de luar escorrendo das árvores iam deixando na calçada.





M. Gama Duarte

21 de Outubro de 2013         





Saudações Pascais à CAIS








Pintura

Título: habitação
Materiais: aguarela, guache, pastel de óleo e seco

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